Isto não é ainda o relato, mas terminei a Ehunmilak ao fim de 42 horas e quarenta. Fiquei em 135 em 330 entrantes. Dos 330, 140 desistiram, quase metade.
Tinha previsto 40-42 horas conservadoras, demorei 42:40. Acabei a correr num bom estado anímico, exceptuando umas bolhas que me surgiram nas últimas 2 horas de muito calor.
Ontem discutia com amigos a propósito das próximas provas e dizia-lhes que eles conseguiam perfeitamente terminar a Ehunmilak, contra o cepticismo dos próprios que já conseguiram provas enormes e que têm até qualidades superiores às minhas em muitos pontos.
Penso que se prendiam ambos à questão dos números 168 (170km na verdade) e 11000m (um pouco menos de 10 mil). A minha convicção é a de que existe um ritmo que nos permite fazer longas distâncias, sejam elas quais forem. Milhares de quilómetros, se for preciso.
O desafio não é fazer 100, 160km, 200, 500km… O desafio é fazer essa distância dentro de um tempo limite. É o tempo limite que torna a prova mais ou menos desafiante, mais ou menos possível. Em muitas ultras, o tempo limite não é demasiado apertado, ao ponto de ser possível fazê-las quase integralmente a andar. Numa prova como a Spartathlon o tempo limite é extremamente apertado. A maior parte dos finishers acaba no limite do tempo e costumam ser cerca de metade. Scott Jurek conseguiu um recorde no Apalachian Trail de 3500km: pouco mais de 46 dias. Conseguiu apenas umas horas abaixo do anterior recorde, mas para o conseguir nos últimos 4 dias fez mais de 200 milhas. Correu uma média de 80km por dia e foi a experiência mais dura que já fez, segundo o próprio, pois teve lesões graves. Portanto, o tempo limite pode ser o tempo oficial da prova como pode ser um tempo limite que é estabelecido como objectivo, como fazer sub xis horas numa 100k ou 100 miler, ou como o caso de Scott, bater um recorde.
Os ultra runners que procuram completar um evento, portanto, pessoas para quem isso é um desafio, têm de responder à questão chave é: qual é o meu ritmo que permite ser finisher no melhor tempo possível e com um conforto aceitável. Para perceber se podemos fazer uma ultra, temos de avaliar se conseguimos terminá-la no tempo limite com essa segurança. Quando arriscamos a participação numa prova sem essa segurança, vamos forçar o ritmo e o próprio conforto fica prejudicado pela ansiedade com o tempo.
O ritmo ideal é um que permite compensar o desgaste até à meta. Numa ultra (para o nível amador / finisher) vamos ter de encontrar um ritmo de desgaste sustentável (termo que inventei).
Este desgaste inclui:
- Desidratação pelo suor e respiração
- Cansaço muscular / articulações
- Oxigénio (em altitude é um bem mais escasso)
- Sais perdidos
- Reservas de energia (grande parte dela proveniente do metabolismo de gordura)
- Desgaste da pele dos pés como bolhas ou fissuras (um problema agravado com lama e calor )
- Sono
- Tédio, desmotivação, impaciência, frustração, desespero, medo etc.
- Problemas como entorses, quedas, feridas, enjoos, etc.
- Perda de calor / hipotermia em temperaturas frias
- Insolação, golpe de calor, queimaduras solares
Para todas estas coisas que nos sugam energia física e mental, existem formas de ir repondo o stock ou de nos protegermos. Há um déficit progressivo ou não chegaríamos à meta mais cansados do que na partida, mais doridos, mais assados e esfomeados. Formas de repor os stocks ou de os proteger:
- Hidratação cuidadosa
- Passada bem flexível, curta e conservadora, evitando grandes impactos
- Ritmo que permite uma respiração normal e descontraída.
- Electrólitos / pastilhas de sal.
- Ingestão de calorias na quantidade certa.
- Ritmo suficientemente lento para que a ingestão de calorias e o metabolismo de gordura sejam suficientes para alimentar o motor – evitar picos cardíacos como correr nas rampas (optar por andar todas as subidas é uma boa opção).
- Passada conservadora, troca de peúgas e sapatilhas, uso de tape, cuidado na passada em cima de pedras etc.
- Dormir
- Motivação absoluta (objectivo: acabar dê por onde der)
- Ir com cuidado para evitar quedas, máxima concentração, passada cuidadosa, levar medicamentos como benuron, voltarene, fita adesiva etc.
- Equipamento adequado para as condições da prova.
- Momentos de descompressão como prestar a atenção à paisagem, falar com voluntários ou outros corredores, saborear uma sombra fresca, uma comida agradável. Desfrutar.
Uma das dificuldades numa ultra muito longa é perceber que ritmo é este e como gerir o equilíbrio entre o desgaste o intake / protecção, uma vez que em princípio ele será tão suave nos primeiros quilómetros que o corpo não dá feedback relevante até ser tarde. Não se trata só do ritmo da corrida. Numa ultra como a Ehunmilak muita gente desiste por ter os pés cozidos da lama e do calor, o que causa fissuras e bolhas graves. A solução passa por evitar lama ao máximo, trocar de sapatilhas e peugas secas e proteger bem os pés com tape. Contudo, notem que o evitar da lama e a substituição das peugas e sapatilhas ocorre antes do problema surgir.
Aí entra um conhecimento e a experiência de provas anteriores e treinos longos ou em más condições. Muitos ultrarunners raramente treinam na intensidade e ritmos ou condições que vão ter numa ultra. Por exemplo, nos treinos podem correr todas as subidas, ou atingir regimes cardíacos nas zonas anaeróbias ou quase (zona 3, 4) mesmo quando não precisam. O que sucede nas ultras com subidas muito extremas (a maior parte delas) é que esses picos cardíacos são inevitáveis mesmo para andar e especialmente em altitude. Qualquer movimento exige esforço e eleva os ritmos, acelera o consumo de energia e leva o atleta para o abismo. Se o atleta também força quando não precisa, como nas subidas suaves, ou em plano, está a fazer a cama para morrer numa subida em que não tem saída. Eu mesmo com todos os cuidados fui destruído pela subida de 1700m em 12 ou 15km ao txindoki com temperaturas superiores a 30 graus e isto ao km 104. Tive de me deitar numa sombra completamente inerte, a morrer, tive problemas de estômago, mas nada de grave para desistir. Recuperei a pouco e pouco. Tenho a certeza que se tivesse forçado antes desse momento, teria ficado muito pior. Desde que comecei a corrida que sabia que iria ter de subir ao Txindoki mais à frente.
A abordagem certa é entrar na corrida com ‘o ritmo’ desde início, mantendo o olho no tempo limite nos cut-offs. Não é plausível a meu ver alguém entrar nestas provas sem uma ideia mínima do tempo que fará. Isso significa que não tem noção de qual é o seu ritmo normal naquela altimetria e distância.
Os treinos ou provas mais curtas para treinos devem procurar explorar esses limites e exposição aos factores de desgaste. Nunca serão semelhantes aos de uma ultra, mas terão de existir alguns testes.
Parte do problema (não é um problema, mas uma característica) de quem subestima a capacidade de fazer uma prova com uma distância maior do que alguma vez fez prende-se com coisas como
- não se sentir confortável em ritmos lentos e correr num esforço forte que tem, em teoria, de aplicar ao longo de 20, 30 ou 40 horas, ou seja, só corre uma de 100km ou 100 milhas com muito desnível quando conseguir corrê-la como actualmente corre provas menores – e isto é legítimo, não é de todo uma crítica!
- Acabar as provas que faz esgotado porque, por serem curtas, conseguem levar-se ao limite e terminar. Como terminam esgotados pensam “impossível correr o dobro do que corri”
- Como correm em esforço / sofrimento, a ideia de prolongar isso pelo dobro ou triplo do tempo não lhe parece muito agradável
- Nunca passaram pela morte e pela ressurreição de uma ultra muito longa em que isso pode suceder algumas vezes.
Sobre o ponto 4, numa ultra de 168km não há dúvida que existem momentos altos e baixos. Eu não posso esquecer que os meus últimos 20-30km foram feitos com bastante energia e que 50km antes estava a morrer.
Posto isto, o principal desafio é espiritual, mental, quando se salta para as ultra ultras. Quando as pessoas se focam em números e altimetria esquecem esta vertente. Pensam que o corpo é que não aguenta. Como se um ultrarruner que consegue uma prova de 100km e 6000m não tivesse corpo para 168 e 11000m ou 300km e 20000m. Tem: desde que atine com o ritmo sustentável, desde que o tempo limite dessa prova não lhe impossibilite esse ritmo e desde que saiba proteger-se das agressões como bolhas, assaduras, enjoos, frio, calor, etc.