A minha primeira e até agora única desistência ocorreu no MIUT aos 98km, quando ia nos 30% primeiros e quando só faltavam 17km e praticamente todo o desnível estava feito. Tive problemas físicos novos – fortes enjoos – e sentia-me muito mal. Mas mesmo assim conseguia andar e podia ter andado até à meta e ser finisher dentro do tempo limite. No entanto desisti e sem qualquer remorso. Mas entretanto, estou a poucos dias de uma com números piores. Em vez de 115km são 168km e em vez de 7800m são 11000m. Então perguntam-me “mas se não conseguiste fazer o MIUT, como é que vais tentar a Ehunmilak?”
1- Colocar o “Ser finisher” no topo das prioridades. Hey, o título do post é “conselhos para nunca desistir”. Devemos ter presente que se metemos na cabeça fazer um tempo xis ou classificação xis isso pode pôr em causa o terminar da prova quando esse objectivo se esfuma depressa por um contratempo qualquer ou por uma incorrecta avaliação da dificuldade. Um mindset mais competitivo também aumenta o risco de problemas como exaustão por exagerar nos primeiros kms. Eu subestimei o MIUT e quis fazer um bom tempo, além disso tive problemas novos que me frustraram por não ir fazer o tempo que queria. É bom ter objectivos, mas se a desistência é algo que preocupa, então é preciso fazer de ser finisher a prioridade número um e não a segunda ou terceira na lista. Também não há problema, a meu ver, de alguém desistir de uma prova quando vê que não vai conseguir o seu objectivo, evitando assim lesões ou desgaste e permitindo-lhe continuar treinos. Antes eu censurava os elites por desistirem tão facilmente, mas depois do MIUT percebi o raciocínio. Não sinto que tenha algo a provar a não ser que esse seja o objectivo. Se o objectivo é ser finisher, as coisas mudam.
2- Aceitar que os primeiros kms podem ser muito duros– Uma das coisas brutais nas ultras e que ainda me surpreende é como os primeiros 30 ou 40kms de trail continuam a ser 30 ou 40kms de trail… difíceis. Seja numa prova de 50km, 80km, 100km ou 168km. Não é por estarem inseridos numa ultra muito longa que os primeiros 20-30km ficam proporcionalmente mais fáceis, mesmo em ritmos lentos. No entanto, temos essa expectativa. Achamos que uma prova de 100km só começa a ser difícil aos 60-70km quando aos 20 podemos apanhar uma subida lixada e ficar de rastos. No UTAX senti-me pior aos 17km do que aos 100km. Nesses momentos é inevitável um raciocínio: “se eu aos 17km me sinto assim… como é que vou aguentar até aos 110km?” É preciso ter paciência e baixar o ritmo, mas não se deve encarar o estado físico e anímico como uma coisa que vai sempre piorando. Émais uma sucessão de oscilações com uma tendência, é verdade, para uma dor muscular maior (ficamos inevitavelmente cada vez mais doridos, mas não necessariamente mais exaustos). Devemos estar preparados para essas sensações e não ficar angustiado.
3- Foco na diversão e no pace conservador – Nunca senti tédio numa ultra, mas nada se compara ao teste de paciência a que as ultras nos sujeitam: é o posto de abastecimento que nunca mais vem ou só aparece 2km depois do previsto, é um km que demora uma eternidade a passar, é uma subida que nunca mais acaba e o cume continua longe… e é aquela consciência de que falta muito até à meta, e que pode ser uma consciência letal. Pode fazer-nos desistir, esmagados. É inevitável essa sensação e cada corredor pode lidar com isso de formas diferentes. Por vezes esquecemo-nos que treinámos meses para aquilo e agora que lá estamos, só queremos que acabe, por vezes logo aos 15k (ver ponto anterior). É paradoxal no mínimo. Mas para ser finisher, o truque é mesmo o factor diversão e prende-se muito com o ritmo imposto. Já fiz a experiência em Sintra. Posso demorar 4h20 a terminar um loop, exausto e a contar os minutos, ou então demorar 5h e terminar a assobiar com um sorriso, bem disposto. Se não estás a divertir-te, estás a ir depressa demais. Isto é especialmente crítico quando o foco é em ser finisher. O que torna a perspectiva de fazer os 80km que restam um pesadelo interminável, é o sofrimento naquele momento extrapolado para mais 20 horas. Mas se o momento estiver a ser menos duro (já nem digo agradável) isso não sucede. Ironicamente, podemos fazer um tempo bem melhor neste ritmo porque não nos arrastamos na parte final da prova e conseguimos correr onde é para correr até ao fim. Até no Sintra Magic Mountain Trail eu e o meu amigo João LP vimos vários corredores passarem por nós aos 10-20km que sabíamos que iam rebentar. Nós íamos a andar nas subidas, com calma, e estes corredores estavam a ofegar demais para uma prova de 50-60km…
4- Estar preparado a nível técnico / equipamento / nutrição / medicamentos – Isto depende de um mix de experiência e estudo teórico / informação. Se o objectivo é ser finisher é crucial não deixar pontas soltas, especiamente em territórios novos e condições novas. Oiçam os mais experientes, falem com quem já fez a prova se for preciso. É preciso ter planos B e soluções para problemas como bolhas, assaduras, frio, chuva, calor extremo, etc. Não é por mais um pouco de peso que não vamos ser finishers. Os pros podem ser minimalistas, um finisher deve ver-se como uma espécie de tanque à prova de tudo o que possa correr mal. O conforto é crucial. O benefício psicológico de ter um problema (ex: assadura, frio) e resolvê-lo no momento (ex: espalhar vaselina, colocar luvas) é enorme. O MIUT nesse aspecto foi muito importante porque cheguei a vários limites e depois disso fiz alterações de equipamento e nutrição. Continuo a considerar bolhas como o problema mais crítico e perigoso, especialmente quando há possibilidade de desidratação com calor /humidade / altitude.
5 – Treino específico de finisher: looooongo e lento, nas condições da prova (desnível)- Acordamos tarde e com ressaca? Estão 30 graus? Estamos a correr e acabou-se a comida e faltam 2 horas? Treinamos na mesma. É excelente poder treinar com más sensações e em horas más. Com reservas de glicogénio em baixo, em jejum etc. É uma mera simulação do que nos espera. Um dos problemas da maior parte dos treinos é que são feitos num ritmo completamente irrealista no âmbito de uma ultra muito longa e em condições mais suaves a nível de altimetria ou tipo de piso. Numa ultra de montanha o atleta que apenas quer ser finisher passa boa parte do tempo a andar, no entanto muitos atletas nunca andam em treinos e nunca usam os bastões que vão usar na prova. Não sou treinador, mas tenho a certeza que pelo menos no plano psicológico é positivo sentir familiaridade com ritmos lentos, andar a pé, bastões, sensações desagradáveis, a velocidade de andar, a paciência. O corpo ganha eficiência nos ritmos a que treinamos mais. Depois há a questão da especificidade. Normalmente as ultras de serra / montanha são quase sempre em condições de desnível e piso técnico mais duras que nos treinos, a não ser que vivamos na Madeira ou na Freita. Mas quanto mais próximo melhor. Isto também é verdade para ultras mais rolantes em estrada como uma Spartathlon ou uma Badwater. Uma ultra em asfalto e pouco desnível é terrível a nível de dores que causa pelos impactos repetidos. É preciso treino específico nessas condições.
6 – compromisso público – É subjectivo, mas eu descobri que parte do segredo da resiliência está no assumir público do nosso objectivo e partilhá-lo. Sentimentos como a vergonha de desiludir os outros, defraudar expectativas etc. são um óptimo tónico para aqueles momentos em que pensamos desistir. As pessoas até podem não nos ligar nenhuma – é o mais provável – mas nós não podemos pensar assim. Essa pressão ajuda a ser teimoso quando as dificuldades aumentam muito.