O livro do lama tibetano Skyong Miphanm, “running with the mind of meditation” apresenta quatro figuras do budismo dos himalaias e relaciona-as com a corrida. Representam qualidades que os bodhisatvas devem desenvolver no caminho para a iluminação.
Elas funcionam um pouco por etapas, embora a passagem para uma etapa seguinte não signifique uma transformação, deixando para trás a etapa anterior, mas sim uma convivência com a mesma.
No livro, cada uma é analisada detalhadamente, com sub-capítulos. Deixo aqui um resumo muito superficial e sofrido, pois as coisas na cultura asiática nunca são lineares como as nossas cabeças ocidentais gostam e as informações são frequentemente contraditórias consoante as fontes consultadas.
A primeira é o Tigre.
O tigre representa a confiança ou consciência que se atinge pela prática. Na corrida é a fase em que estabelecemos as bases de disciplina e um novo conhecimento de nós próprios. Descobrimos coisas que não sabíamos que existiam em nós, por exemplo, que conseguimos correr sem ficar ofegantes.É uma fase que exige dedicação e humildade, prática. Na meditação, é sermos capazes de nos concentrarmos apenas na respiração e ter a prática de meditar regularmente, da boa postura, de sermos capazes de ficar parados. Na corrida, focamo-nos em detalhes como a passada, a postura, a respiração, o ritmo cardíaco. Aprendemos. A transformação em tigre ocorre quando correr se torna natural Muita gente que diz não gostar de correr, normalmente não chegou a tigre, como eu na meditação, em que 10 minutos quieto a respirar me parecem intermináveis, um suplício, e em que não consigo estar mais de 5 segundo sem ruído mental. Mas mesmo os que gostam e estão na fase leão, garuda ou dragão, precisam de ser tigres sempre. É a base.
Eu lido diariamente com os desafios do tigre após cada prova completada e pausa, ou lesão. Recomeçar a base, até ser tigre de novo, é sempre o mais complicado para mim. E vocês?
A segunda é a do leão das neves.
É associada a felicidade e exuberância. Já gostamos de correr, não é só um sacrifício. Começamos a ter consciência do que nos rodeia, podemos apreciar uma paisagem, uma serra, a companhia, uma cidade, uma rua. Estamos receptivos, alertas, observadores. Penso que praticamente todos os trail runners, por exemplo, são corredores que chegaram à fase leão.
Comecei por ver a corrida como um meio para ser saudável, ou perder peso para poder fazer ciclismo melhor, mas à medida que me transformava em tigre, passei a ver o leão e a preferir passear pela cidade em long runs, em querer descobrir ruas novas, cidades novas em maratonas e finalmente a natureza pelo trail. E vocês?
A terceira é o garuda.
A garuda nasce e assim que nasce pode voar para todas as direcções. É associada ao poder ilimitado da mente na meditação. Na corrida é a fase em que nos metemos em desafios que obrigam a uma superação , embora, claro, com uma dose de realismo, não é irreflectida. É a fase em que nos inscrevemos numa distância maior, numa corrida diferente, fora da nossa zona de conforto, ou colocamos um objectivo de tempo ambicioso. Ninguém nos pára. Esta exige uma motivação de fundo, maior, uma razão.
Podia pensar que sou um garuda inato, por me ter metido em objectivos tão ambiciosos em pouco tempo, mas a verdade é que senti que quase perdi o Leão, a alegria e exuberância, em desafios demasiado difíceis ou com lesões por treinar demais. Às vezes o lado inconsciente pode levar-nos a desmotivação e desaires. Alguma vez sentiram isso?
A última é o dragão.
O dragão é símbolo de sabedoria, omnisciência, inteligência, de poder gentil, de generosidade. É misterioso e surge sempre perto de nuvens, no céu. Já não corremos para nós, mas para os outros, já não é só para o nosso prazer e alegria, mas pelo prazer e alegria dos outros.
Eu ao ler isto pensei imediatamente na Rosa Mota e no Scott Jureck, como dois atletas que foram os melhores do mundo e que agora continuam a correr com alegria e generosidade. A Rosa Mota é sempre vista em corridas, por causas e está sempre sorridente e feliz. Mas continua tigre, a correr, a treinar, para o poder fazer.
O Scott na sua biografia, fala no beco aparentemente sem saída em que se viu, a nível de motivação, e como desceu às raízes da corrida, ao esperar por todos os corredores no fim das provas ou ao ser apenas voluntário em provas. E não deixa de ser garuda.
Neste momento está a percorrer as mais de 2 mil milhas do apalachian trail, tentando um recorde.
E pronto, foi a minha tentativa, espero não ter simplificado demais.