preparação para PT281 – treino na Arrábida e testes

A algumas semana da PT281 (próximo 28 de Julho de 2018) posso dizer que fiz bem em inscrever-me e já lá vou.

Ontem foi um treino simpático de 30kms pela Arrábida, o último “grande” que planeio fazer até à prova, pois por regra, quanto maior é uma prova, mais importante é um bom tapering (descanso) prévio à mesma. Não serve de nada para uma prova de 281kms com temperaturas tórridas forçar treinos.

 

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O objectivo passou por testar algum equipamento:

  1. o chapéu (excelente)  da Outdoor Research  (Sun Runner Cap XL) ,  Já tinha um da Salamon que usei na transvulcania, mas este chapéu é outra liga, comprei-o depois de andar a pesquisar uma eternidade. A “flap” é removível e prende-se facilmente com dois botões de pressão. Tem um pequeno cordão que permite o ajuste ao rosto. Este é um problema destes chapéus para corredores: quando nos movemos ou há vento, as abas levantam. Além disso nunca são verdadeiramente compridos que chegue (para mim) para tapar as partes mais delicadas: aquela zona da gola da t-shirt técnica onde começa o pescoço e que frequentemente vê o protector solar ser retirado pela fricção. As maiores queimaduras solares que tive foi sempre nas zonas onde acaba uma t-shirt e começa pele. Com este chapéu não é necessário protector na cara e pescoço. Pontos contra, o facto de ter as abas tão juntas à cara gera calor, mas também estou a pensar encharcar o chapéu e as abas sempre que possível.
  2. Os óculos escuros combinados com o chapéu dão uma espécie de sensação de “tenda”. É confortável. O meu medo é os óculos embaciarem demais ou estarem sempre sujos e ser complicado lavá-los bem.
  3. Um powerbank de 6.5 mil amperes com 2 outputs. Um desafio importante para a PT é a gestão da bateria do GPS, das luzes, do telemóvel… afinal de contas podem ser 65 horas. Estou a pensar usar dois powerbanks destes espaçados e 2 pequenos tipo stick que servirão para emergências. A vantagem destes maiores é que carregam muito mais rápido. As baterias não aqueceram e acomodadas no bolso da frente não me pareceu que o sobreaquecimento fosse um risco.
  4. Navegação e o Garmin Fenix 5x. Tomei a decisão de o usar em vez de um dispositivo de mão. Vou colocar o sucesso da prova a depender dele. Se tiver um bug, estou lixado, porque a prova só conta com um registo GPX correcto. Confesso que tenho algum receio porque os Garmin já me deixaram ficar mal várias vezes, desde bugs como baterias que descarregam num loop a simplesmente não apanharem o GPS nem por nada em pleno dia de prova. O garmin descarrega rápido, mas carrega muito rápido, cada 10% de bateria tem-me demorado cerca de 5 minutos com o powerbank o que é assombroso comparado com o  suunto ambit 2.
  5. Máquina fotográfica (Ricoh GR II)… Aqui vai mesmo ter de ser. ricoh-gr-ii-01
    Hesitei imenso. Tenho um Huwei P20 novo com lentes supostamente Leica, mas não há qualquer comparação possível entre a qualidade da imagem da Ricoh e do telemóvel, o que não é de surpreender tendo em conta o sensor da Ricoh é enorme comparado com os dos telemóveis. A ideia era levar apenas o telemóvel, mas nos testes, para além da qualidade ser inferior, observei que o telemóvel gasta demasiada bateria e a operação do mesmo é demasiado complexa. A Ricoh tem um interface 100% físico com botões para as funções. 3 baterias suplentes espalhadas pelo percurso e está feito. Por que razão levar máquina? Porque adoro fotografia e porque desde um nascer do sol no fim da primeira noite do Ultra Trail do Montblanc que foi das coisas mais assombrosas que vi na vida, que sei que estas são oportunidades únicas. Além disso, estar atento a oportunidades, é algo que psicologicamente me entretém e motiva.
  6. As sapatilhas são umas Ultra Raptor com poucos kms. Confesso que serem pretas me instiga algum pessimismo por absorverem o calor. Mas são fiáveis. Já não vou a tempo de testar novas.

Testei também a hidratação, procurando beber apenas com sede, num mini teste. Não é a primeira vez e já tenho uma boa ideia do que preciso. Não estava um calor tórrido como provavelmente vai estar. A água vai ser um desafio extremo. Eram só 30kms (há bases de vida distanciadas de 40kms na PT281) e ao fim de 15kms já estava preocupado com só ter 1.5L de água. Felizmente encontrei um café para me sossegar e acrescentei mais 1L. Ainda acabei com um L, portanto, aguentava no limite 4h com 1.5L-2L de água sem calor excessivo. Com calor excessivo, tornou-se claro que tenho de levar os flasks também para as etapas mais críticas e expandir a capacidade para os 2.5L, embora tenha de confirmar com os abastecimentos.

Hoje uma volta de bicicleta de 2h

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Porque fiz bem em inscrever-me? Por vários motivos, mas os mais pragmáticos são o facto desta prova me obrigar de novo a uma espécie de humildade de principiante em que tenho medo de não acabar. Os números são claros. O ano passado dos 40 malucos, metade desistiu. Da metade que acabou, metade fê-lo após as 60 horas com um tempo limite de 66h e estão lá corredores que eu acho melhores do que eu. Isto fez-me querer  testar e planear. Tenho andado mesmo a usar um excel do qual dou um excerto…

Screen Shot 2018-07-08 at 20.36.19Estimo os tempos, o que deve estar em cada posto, se é de noite ou dia, se passa por cafés ou supermercados, quanta água levar, o que carregar, o que comer…. tudo deve estar cuidadosamente anotado e planeado, incluindo os ritmos. Claro que depois na prática será sempre preciso improvisar e adaptar-se e espero o pior. Também me assustou ao ponto de treinar melhor e tentar comer melhor e ter melhores hábitos.

Vai ser a primeira vez em que participo numa prova para a qual parto pessimista pelas razões que apontei. Talvez não pessimista, apenas realista.

 

PT281 – uma questão de peso e de aventura

Não tenho escrito aqui, mas preciso do meu próprio feedback motivacional para os 281kms da PT281 que decorrerá no fim de Julho. Já pendurei um calendário na parede com a fatídica data de 26 de Julho de 2018. Se dissesse que acredito que consigo chegar ao fim da PT281, mentia.

Ainda não acredito e sou realista. A desistência aos 130 e tal kms no UTMB de 2017  por dores num joelho deixou algumas marcas. Mas também sinais positivos. Conseguia correr – sentia-me francamente melhor do que na Ehunmilak por exemplo. Os problemas gástricos foram menos graves do que no MIUT. Não tive bolhas.

Mas depois disso, por questões pessoais, parei de treinar muito tempo. E desmotivei. Ganhei peso. Estou com 81.5kgs e 18% de massa gorda, longe dos meus 75kg e 13%. Estou até pior em parte do que quando comecei a correr, embora o meu corpo não tenha nada a ver, ou seja, obviamente que corro mais – antes não aguentava nem 2kms  – mas simplesmente estou com um chassis mais pesado. Não consigo regularidade. Ando com má vida. Descentrado da corrida. Agitado. É como se quisesse resolver em poucos dias o treino de meses. Mas também não consigo facilmente regularidade por questões profissionais e familiares. É difícil ter um plano estável, uma rotina. E basta uma quebra na rotina para regressar à estaca zero na motivação.

Mas inscrevi-me na PT281 à procura de ser salvo porque é precisamente por não acreditar que consigo que a levo mais a sério. Também me permite um tipo de treino não técnico, próximo de casa e focado em long runs em vez de corridas diárias regulares – que não consigo fazer. Esses treinos longos devem ser explorações, coisas mais épicas, viagens, ligações entre localidades e afins.

Um dia, com o coração pesado, resolvi correr e fiz 37kms sofridos e voltar. Uma espécie de desespero. O meu amigo Joao bem gozou comigo.
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Sofri imenso, mas consegui e senti-me bem depois, no dia seguinte quase nenhuma dor.

Tenho reparado que a máquina ainda cá está, simplesmente parece afogada neste chassis gordo. Ontem num treino de 16kms igualei sem querer o meu PR na avenida das forças armadas, um segmento perto de casa que já corri 11 vezes.

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Aconteceu o mesmo noutro segmento em Monsanto, uma rampa bastante longa. Ai forcei para passar 3 BTT’istas e passar por eles na subida e  fiz o meu segundo melhor tempo nesse, por alguns segundos, o que surpreendeu porque me sinto como um elefante.

E quando vejo o meu PR nesse segmento, foi em junho de 2015, na era Transvulcania… Se por um lado podia ficar deprimido por estar pior em 2018 do que em 2015, a verdade é que o meu corpo era outro. Por curiosidade fui ver quanto pesava e qual a minha % de body fat nessa altura e cá está, estava nos mínimos.

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Portanto, aqui reside a minha fé para a PT281. Desde que li o Racing Weight do Matt Ftizgerald que sei isto, o peso é o melhor previsor da performance. Tenho a convicção que se descer dos 18% de massa gorda para os 12-13%  e perder uns 7 ou 8 kg, vou descobrir que sou um corredor melhor que em 2015, porque entretanto fiz milhares de kms e ascendi milhares de metros…

Mas essa transformação implicará algumas coisas com que vou ter de lidar. O tempo mudou e os dias estão mais compridos. Isso ajuda um pouco. Ontem fiz 16kms de manhã e da parte da tarde 9kms a puxar a minha filha no atrelado, algo impossível sem estes dias mais compridos e luminosos. Espero manter o foco e assim que puder, focar-me em mais treinos muito longos a baixo ritmo .

Review do Garmin Fenix 5x que parece má mas não

Depois de o utilizar cerca de 6 meses, incluindo no Ultra Trail do Mont Blanc, e em resposta a pedidos de amigos para dar uma opinião, resolvi colocar aqui a lista das minhas apreciações ao dito. A maior inovação face aos produtos do passado ou da linha garmin (incluindo o garmin 5) é permitir ter mapas com cartografia detalhada no pulso.

(não é o meu braço)

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Background relevante: uso produtos da Garmin para aventura desde 2004 ou 2005 quando adquiri um 60cx que já na altura tinha mapas a cores.

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Fiz muitos raids de BTT a solo com ele, recorrendo a tracks importados de sites como http://www.gpsies.com que tinham uma base de dados fenomenal. Para mim isto foi revolucionário. Foi com este que explorei Sintra, Arrábida ou Montejunto, mesmo sem conhecer o terreno, aventurando-me por trilhos e tendo consciência de que estava a fazer um percurso circular de 30, 40 ou 50kms.. A sensação de explorar e investigar a solo ou sem um “guia” a levar-nos, é de uma liberdade imensa.

Poder ter isso no pulso era a premissa do Garmin 5x que só adquiri porque o meu Suunto Ambit 2 teve um treco (mas resolveu-se com um reset, já o vendi entretanto pelo OLX).

Vou citar os pontos em que fiquei agradavelmente surprendido e desiludido. Ao contrário das reviews clássicas começo pelo mau… :

1) Tem uma coisa magnífica que é a possibilidade de gerar percursos aleatórios com uma distância pré-definida e uma direcção geral, mas o algoritmo do round route generator é extremamente impreciso. Calcula quase sempre kms a mais por larga margem. Pedimos um percurso de 10km ele marca 12km. Pedimos um de 20 e ele pode fabricar um de 24kms. Já os gero a pensar nisto e dou desconto, se quero fazer 15km peço um de 11kms.

2) Demora muito tempo. Ele gera 3 rotas na direcção que especificarmos (norte, sul, este oeste ou “any” em que é aleatório). Podemos escolher uma das três. O meu conselho é meter o relógio na varanda a calcular porque DEMORA. O que mete outro problema. Já me aconteceu ele entrar em sleep durante o calculo porque o deixei sossegado.

3) fica limitado por barreiras geográficas. Por exemplo, estando no campo grande são uns 5-6kms até ao Tejo indo para sul até ao terreiro do paço. Se pedirmos um percurso de 15kms para sul ele fica a anhar. Eu imaginaria que faria 5kms até ao rio e depois ao longo do rio, mas não. Não calcula.

4) se sairmos do percurso estamos lixados. Aconteceu-me sair para beber água num bebedouro e só me afastei uns 200 metros da course. Ele simplesmente saiu do modo de navegação e a rota que estava a fazer perdeu-se completamente. Não é que se corra o risco de nos perdermos (há sempre o registo do track para trás e mapas) mas perde-se o cálculo de fazer xis kms numa round route.

Isto são os problemas relacionados com o round route generator. Mas eles derivam em geral da lentidão enorme do relógio nas tarefas de computação. Acreditem, o garmin 60cx de 2004 handheld é mais rápido, muito mais rápido, que o relógio de 2017 a fazer as mesmas operações. Eu usava o 60cx no carro ou no BTT a alta velocidade. Já testei o 5x em ciclismo de estrada e é um bocadinho para esquecer. O ecrã é demasiado pequeno para ser seguro, mesmo com um suporte. E a refresh rate dos mapas é demasiado lenta! É frequente o mapa ficar em branco (até a correr acontece se fizeremos zoom out).

Mais problemas: os bugs garmin. Quem vem de um suunto ambit 2 que era analógico e fiável como uma máquina… E isto é típico da Garmin. Tive um garmin 610 que era um pesadelo. No dia da maratona de málaga resolveu morrer assim do nada. A Garmin tem aparelhos complexos cheios de features interessantes, mas depois torna os relógios mais propensos a erros. O garmin 5x já me fez mais partidas em 6 meses que o suunto em anos.

A precisão instantânea do monitor cardíaco óptico de pulso é má comparada com fita.

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Usei fitas cardíacas fiáveis no Garmin 610, num 210 e no Ambit 2. Fiz planos de treinos para meia maratona, maratona II e III da garmin sempre com fita cardíaca. Afinei as minhas zonas cardíacas de referência ao longo de muitos kms… Cheguei a calcular um abaixamento de 5-6bpm só de deixar de fumar em duas semanas. Fiz maratonas a gerir os bpms. Consigo já adivinhar que o meu coração está a 145bpm, 155bpm ou 170bpm pelas sensações do corpo. E posso assegurar que, apesar de nunca ter feito o teste de 2 relógios e comparar, não bate a bota com a perdigota com tudo o que sejam treinos com ritmos muito variáveis, especialmente trail com desnível ou séries. Coloquei a questão em fóruns da garmin e nada. Em Sintra em declives acentuados comigo a ofegar e a latejar, claros sintomas de 175bpm ele dizia 120bpm. Nos fóruns as teorias sucedem-se: “é por causa dos bastões” etc. Eu pensei que tinha a ver com a cadência. Num declive muito acentuado ele podia simplesmente achar que eu estava a ir demasiado lento para a intensidade cardíaca e ter algo que corrigisse potenciais erros. Mas asseguraram-me que a Garmin não tem nenhum algoritmo corrector do pace para evitar erros de medida.

Ou seja, em resumo, acho que é bom e mais prático que fita para treinos estáveis, em média por km não difere demais da fita, mas não serve para treinar séries ou avaliar desempenho. Talvez outros tenham outra experiência.

Mais pontos negativos: os menus, a integração com o telemóvel, a tonelada de ferramentas garmin…

Não sei o que se passa na cabeça dos tipos da Garmin mas alguém bom em heurística ou processos de tomada de decisão precisa de dar uma perninha lá. A Garmin tem uma desorganização extrema nas platormas.

Só para ter um garmin 5x tenho de ter:

O Garmin Map Install (instalar mapas), Garmin Express (ligar relógio ao pc) e Garmin Base Camp (para gerir mapas e percursos). No telemóvel tenho o Garmin Connect onde faço upload dos treinos e tenho insights e se gerem settings. E online outro Garmin Connect que não tem nada a ver com o do telemóvel. A ajudar à festa, a sofisticação do Garmin 5x permite mexer em settings no próprio relógio (como as zonas cardíacas, dados, unidades etc.) ao contrário do Suunto que não permitia nada. Colocam-se problemas graves ao nível de hierarquia. Se eu defino o meu peso no relógio isso sincroniza o peso no Connect? Pela minha experiência não. Nem o contrário. Podemos ter pesos diferentes em duas plataformas (não acontecia no garmin 610 em que era sincronizado).

Outro problema grave, o Movescount tinha mapas abertos em que era possível pesquisar moradas. O Garmin Basecamp tem mapas garmin não pesquisáveis como os mapas abertos (google maps etc.).

Enfim, isto é próprio da Garmin que parece um enorme frankenstein na integração de várias plataformas e que insiste nos seus próprios mapas que em certos tópicos são muito inferiores aos abertos como os da Google. Inúmeras vezes fiquei frustrado por perceber que com o telemóvel e o Google Maps me oriento melhor do que com o relógio GPS xpto. Ora, o Garmin 60cx em 2004 dava-me algo que nenhum telemóvel podia dar. Os tempos mudaram, suponho.

Os menus são caóticos. Caóticos. Por exemplo, para mexer nas definições de navegação a meio de um treino de corrida há 3 opções. Três: “Run Settings”, “Navigation”, “Navigation Settings”… Pensaríamos que o Run Settings só diz respeito a corrida, mas chegando lá aparecem temas como “MAP” e “ROUTING”. O map permite definir setings dos mapas e o routing avoidances como estradas etc. que eu diria fazer parte do NAVIGATION. Só que… Navigation…? Ou Navigation Settings? É surreal. Os menus da Garmin parecem o meu escritório (sou um génio, deixem-me).

Pontos positivos face à experiência do suunto ambit 2

1) O random route generator. A possibilidade de estabelecer uma rota circular de xis kms tem um potencial enorme, especialmente em locais desconhecidos. Ele escolhe mesmo trilhos, parques, ruelas, ciclovias… Fiquei fascinado com o detalhe e conhecimento de terreno que revela e mesmo em Lisboa onde já corri 500x descubro percursos novos. É um relógio que nos permite ir para uma cidade qualquer ou local, estacionar o carro, marcar 10, 20 ou 30kms e ele desenha um percurso que seguimos. A forma de seguir o percurso até é divertida. Há um indicador de distância em metros até à próxima viragem e tem vibração que nos avisa que nos estamos a aproximar de uma mudança de direcção ou rua. Isto acaba por quebrar um treino longo em pequenas etapas e faz com que não estejamos sempre a olhar para o relógio.

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A favor também o facto dos percursos me parecerem até agora bastante aleatórios. Tive receio que se metesse 20kms north duas vezes no mesmo local ele calculasse a mesma coisa. Tem um grau de randomness interessante, focando mesmo assim em locais corríveis.

2) É realmente incrível poder fazer upload do treino para o telemóvel sem cabos, isto começou no suunto ambit 3 mas eu estava habituado a outra coisa mais arcaica

3) é bonito. É um relógio bonito (mas não diria que é bonito num pulso mais estreitinho, é um relógio grande). A correia é muito confortável e parece boa. A do Ambit 2 era um plástico rígido muito mau.

4) as notificações de mensagens e chamadas… pensei que ia odiar mas adoro. Nunca perco chamadas. Mesmo como parceiro de trabalho é importante. Recebo mensagens no relógio (whatsapp, messenger etc.) e posso ler logo no pulso. Como tenho uma filha pequena também me descansa saber que mesmo a meio de um treino longo posso ter o telemóvel na mochila e se recebo uma mensagem ou chamada telefónica posso ver no pulso se é importante ou não sem ter de tirar a mochila e desenterrar o telefone.

5) Carrega muito, muito rápido comparado com o ambit 2. Para mim isso é fenomenal para as ultras porque carrego os relógios com powerbank a meio. O fénix fica com carga completa em pouco tempo. O lock com o cabo é forte, embora não se possa usar o relógio e carregar (não se pode com nenhum acho)

6) Esforço da Garmin em desenvolver aplicações e métricas interessantes para o dia a dia como os passos, os andares que se sobem, as horas de sono. Os objectivos são dinâmicos e mudam consoante o nosso histórico. Mas também denotam algum desnorte na garmin quando têm os problemas gravíssimos de arrastarem plataformas e interfaces paralelos que não comunicam entre si.

Veredicto: se acham que vão dar uso ao random route generator, força. Como venho de uma geração de relógios muito arcaica (incrível como 3 anos parece uma eternidade) o facto do relógio ser-me útil no dia a dia com as notificações também é relevante. Não pensem no 5x como sequer uma aproximação a handheld devices da Garmin que estão léguas à frente ou gps próprios para ciclismo ou para substituir o GPS do carro ou do telemóvel com google maps para descobrir se é na próxima rua ou na seguinte que está o restaurante tal e tal.

Os mapas são giros, mas não vejo futuro na Garmin a insistir nos seus mapas próprios para o segmento de consumidor e o interface relógio de pulso tem limitações sérias. Talvez comandos de voz no futuro?

É um relógio sólido de treino, boa bateria, fácil de fazer upload e sincronização (mais ainda com o mais recente update que resolveu esse bug).

Sintam-se à vontade para discordar, podem ter experiências diferentes.

UTMB 2017 – a picada do escorpião

O último relato que tentei escrever ficou a meio, como a prova – a Freita. Tem lá coisas muito boas, acreditem. Estive a reler. Fica para mim. Eu por norma esqueço-me do que escrevo e por isso posso avaliar um texto meu como se tivesse escrito por outro génio, de forma totalmente imparcial.

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O UTMB. Vou escrever isto no hotel, no aeroporto, no avião, depois polir um pouco em casa, mas pouco, que perdi a minha paciência toda para o resto da vida na subida para Champex, só com uma perna funcional.

O UTMB sempre me transmitiu sentimentos contraditórios como a Irina Shaik ou bacalhau com natas. Parece muito apetecível, mas há sempre qualquer coisa que nos faz desconfiar. Trail runner que se passeie com o colete de finisher do UTMB na recolha de um dorsal cheira-me a novo rico. E só acho isso dessa prova em particular e de nenhuma outra, até porque todas as outras provas tem de prestar vassalagem ao UTMB por causa dos pontos, como bem se viu com o sarilho do Kilian na Hardrock (Why we won’t pay: UTMB, ITRA and the “pay for points” racket)
O UTMB é assim uma espécie de Microsoft do trail running, mas a Microsoft dos anos 90, antes da Google e do Facebook e da Apple.

– Então se achas isso do UTMB porque é que te inscreveste!? – (nota: ler com voz irritante. Ao longo do post há uma voz irritante que eu imagino que seja a do leitor disto e que faz perguntas chatas tipo aquele marrão que se senta na primeira fila e quando chega à parte das perguntas numa apresentação desata a apontar erros e incongruências para parecer bem)
O João é que achou boa ideia aproveitar os pontos que tínhamos e tentar o sorteio, a culpa é dele, perguntem-lhe a ele que acabou em 39 horas e tem a mania que é esperto.

O João tem a mania que é esperto e acaba todas as provas 3 ou 4 horas antes de mim.

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Não se perdia nada porque se não fossemos sorteados, íamos ter mais probabilidades de entrar para o ano ou depois. Rendi-me a esta lógica. O problema é que o João (que é engenheiro de formação) já despachou esta estucha que é o UTMB enquanto que eu fiquei com isto atravessado que me lixei. Enfim, eu talvez volte. Só para ter um colete desses. Com um colete de finisher do UTMB vou levantar dorsais no trail dos Cucos em Torres Vedras ou no Grandes Trilhos do Leitão na Bairrada. Se calhar peço o do João e ando eu com ele todo enchouriçado lá dentro. Corrida da água em Monsanto. Ericeira Trail. Trilhos do Javali. Lá vou eu durante a prova toda com o colete de finisher do UTMB super descontraído para os outros corredores: “Está fresquinho não está? Que sorte! Trouxe o meu colete! É melhor vestir o meu pequeno colete do UTMB!”

Olhem para nós, temos coletes de finisher! E sandálias com meias!

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O João não vai precisar dele, nunca o vai usar. Aliás, ninguém usa colete.
Nunca. Excepto para levantar dorsais ou passear em Chamonix e no aeroporto no dia seguinte à prova.
Nisso dou os parabéns à organização. Se tivessem escolhido um prático hoodie como o da Ehunmilak que eu uso quase todos os dias para ir à mercearia ou vazar as garrafas no vidrão com a Júlia às cavalitas, uma pessoa desvalorizava o UTMB. Assim não. Assim a organização garante que ninguém o usa no dia a dia, mas apenas em ocasiões de gala como casamentos, baptizados e levantamentos de dorsais.
– Estás a dizer isso porque não tens nenhum e passaste ontem e hoje a ver idiotas com coletes desses por todo o lado.
Não me conseguem atingir, escusam de tentar!
O João quis vir ao UTMB para despachar isto e ainda está a tentar recuperar do choque de lidar com franceses e suíços. Os suíços… Os suíços são tão maus que basta uma temporada na suíça para começar a achar o franceses simpáticos. Os suíços são tão sinistros que nem o Hitler quis nada com eles. Ninguém quer. Deixamos lá o nosso dinheiro em parte por isso, sabemos que fica seguro. Quando cá nos vêm visitar – por alguma razão adoram festas de aldeia em agosto – os carros dos suíços têm sempre os vidros fumados, estão kitados com ailerons e escapes de rendimento. Os filhos andam com t-shirts do Cristiano Ronaldo e brincos de argolas. Nem percebo como é que conseguiram inventar os hedge funds e as off shores, os suíços. Mistério.
Mas nem tudo é negativo nos franceses. Os franceses são obcecados por queijo. Eu gosto de queijo, mas caramba.

Em tempos escrevi uma lista de qualidades que a mãe dos meus filhos teria de ter e “gostar de desporto” era uma dos 18374 items da lista. Os franceses daqui estão para queijo como uma personal trainer de crossfit e atleta de elite de triatlo está para “gostar de desporto”. A sensação que tive com a cozinha de Chamonix é que 90% da população é composta por ratinhos abastados que gostam do bom e do melhor queijo que o dinheiro judeu pode comprar. A imaginação para criar 1001 coisas com queijo rivaliza apenas com a nossa para o bacalhau. Contudo nós somos honestos enquanto que os franceses são trapaceiros. Lá na França, pedimos um bife e o bife vem envolto num litro de queijo derretido. Queremos umas aparentemente deliciosas fatias de couve flor e temos de as pescar dentro de um pequeno pote de queijo líquido onde se afogaram. Uma sopa de cebola gratinada é na verdade um pouco de caldo e cebola debaixo de uma camada de de 20cm de queijo. Que eu saiba não metemos bacalhau na comida das pessoas sem as avisar. Até na receita do Bacalhau Escondido somos ingénuos ao ponto de dar uma pista óbvia no nome do prato. “O que é que isto tem aqui no meio do puré deste Bacalhau Escondido? Será entrecosto de porco?” – said no one ever.
As montras das lojas estão cheias de utensílios requintados para manejar queijo pelo meio de skis e equipamento de montanhismo.
E pronto, está descrito Chamonix e a frança. Aqui uma grelha de fotos que não tive paciência para seleccionar.


– Estás mas é ressentido de não ter um colete de finisher. Ainda agora estás a escrever isso no hotel e há 2 japoneses com coletes e tu nada….
Por acaso não estou. Até suavizei a opinião que tinha do UTMB e dos franceses em muitos detalhes. Houve pelo menos uns três que foram até simpáticos, se bem que um deles pelos vistos pensou que eu podia ser de elite e não um DNF e então arranjou-me boleia para o hotel às 4 da manhã com medo da bad press.
Mas o UTMB… é uma coisa de marketing global que mete muitos asiáticos que são mais transparentes que os ocidentais nos defeitos e virtudes. Em certa medida olhar para eles fez-me ver o pior de nós, de mim. Não quero generalizar, claro, não gosto de generalizar sobre mim porque sou muito complexo e qualquer avaliação peca por imprecisa. Mas como não têm tantos filtros, são mais puros, e revelam aquele lado de vaidade inerente ao UTMB que a meu ver foge um pouco ao espírito do verdad…
– Pára com as filosofias! Chato! Conta mas é o relato crl!
Ok. Esqueci-me que estou a escrever para leitores sem paciência nenhuma ou sensibilidade. Tudo bem. Mas o relato é chato como tudo. Se não fosse a tempestade apocalíptica isto teria sido uma seca. Voltarei a este tema.

A minha actividade no strava.


O primeiro anti-climax do utmb é a partida. Mega música épica, multidão, ecrãs gigantes, flashes, pessoas empoleiradas em varandas, drones, helicópteros, rostos tensos e apreensivos, a contagem decrescente, o tempo que nunca mais passa, finalmente faltam 10 minutos, finalmente 5 minutos, últimas verificações, correia muito larga, fecho fechado, ajustar atacador, relógio gps ok, 1 minuto, depois o countdown, A ex 3…2…1… YEAAAAHHH….

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só que não.
Demoramos 20 minutos até poder começar correr. Até lá vamos a andar no meio de uma multidão de corredores em ritmo mais lento que franceses a caminho do banho semanal. Imagino que para os que partem na frente as coisas façam sentido, mas um pouco cá para trás, vamos a passo. Milhares de pessoas a aplaudirem pessoas a andar encavalitadas umas nas outras. O segundo anti-climax: tinha vontade de fazer chichi. Mas a multidão era tanta que a 30 minutos da partida não me atrevi a sair do lugar. Nisto partimos tipo procissão, e quando o pelotão alongou já fora de Chamonix meti-me numa berma e fiz chichi ao pé de um Audi A6 e um jipe Mercedes (o que foi? Aqui é tudo comprado com offshores e ouro judeu). Resultado: fiquei em último. É verdade, posso dizer com orgulho que estive em último durante a prova e que ultrapassei cerca de 1200 pessoas durante a mesma. O UTMB é SEMPRE assim do princípio ao fim. Paramos para atar um sapato, passam 20 gajos por nós. Tiramos o casaco porque está frio, passam mais 20 pessoas. Só não passam se estivermos em último.
A primeira parte do UTMB engana muito. É plana. Os primeiros 10kms passam depressa. O caminho segue segue segue.
Espera Lourenço, antes de continuares, fala-nos sobre o equipamento que levavas? Que opções tomaste?
Isto é tão pouco credível. Como se quisessem saber… mas cá vai. Até poucas horas antes da partida a organização não sabia qual o percurso final. O tempo estava mau. E mau aqui em montanha com passagens a 2500m, é mau. Levei os avisos a sério. Da lista de equipamento obrigatório de todos os anos constam luvas impermeáveis, casaco impermeável com mínimo de 1000 schmerbers. Na véspera acrescentei ao meu kit um casaco pelo qual me apaixonei, o Adonis da Marmot.

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Isto sou eu a testá-lo na véspera do UTMB.

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A versão feminina do casaco chama-se Marmot Valor.

O meu da North Face e que nunca me deixou mal em provas em Portugal, teria sido insuficiente neste clima Era muito importante para o conforto um casaco um pouco mais rígido e protector, com uma estrutura para o capuz e que permitisse fechar em torno do pescoço. Na prática com a cara enfiada aqui dentro sentimo-nos como uma raposa numa toca portátil e Deus sabe como eu gosto de estar assim tipo Kenny. Parece que as coisas acontecem “lá fora” e que o casaco simplesmente nos deixa como espectadores de um filme. Se estivesse fresco no metro ia sempre com isto para a Linha Verde.

As luvas foram umas sealzskins, impermeáveis, de ciclismo. Não são o ideal para trail porque se dão mal com velcro, mas são excelentes na protecção do frio. Havia momentos em que para ajustar um fecho ou mexer no relógio tirava uma luva e as minhas mãos gelavam em menos de 10 segundos, demorando uma eternidade para voltar a aquecer. Manter calor é possível, mas recuperar é muito complicado. E fiz o que todo o ultra runner experiente faz: comprei umas sapatilhas no dia anterior e estreei-as na prova. Já sei o que vão dizer
– Isso é tão estúpido!
Eu sabia. Eu sabia que vocês iam dizer isso. São tão previsíveis. Talvez por serem um produto da minha imaginação? Mas escolhi uma La Sportiva Ultra Raptor, é o meu 3º par, tamanho 44.

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Tenho uns 1500kms feitos em La Sportiva Ultra Raptor. O twist é que estas eram em goretex, portanto, impermeáveis e mais quentes. Li que ia chover e não ia para brincadeiras. Pés molhados e frios = problemas. Soma-se a isto umas overpants impermeáveis da decathlon que pensava não serem necessárias e fiz a 2ª parte toda com elas.
Fui com uma baselayer térmica decathlon, corsários North Face, meias decathlon quentes de trail, pés com tape kinesio para proteger de bolhas, bastões black diamond, luz Petzl Tikka RXP, t-shirt técnica dos Abutres, buff da buff…
Obrigado, isso é fascinante, mas afinal queremos o relato, mudamos de ideias.

Crianças. Recordemos, corrida em plano nos primeiros 10kms, trilho agradável, junto a um rio, começo a descontrair e finalmente a entrar em modo de corrida, a perceber onde estou, que é real, que finalmente estou no UTMB, que está acontecer. Não que ligasse muito a isso, mas fiquei emocionado e até me veio uma lágrima. Que sorte que tenho de poder sofrer assim 40 e tal horas, pensei, sou um felizardo!

Ao passar por Les Houches e pelo primeiro abastecimento estou tão eufórico que nem paro, continuo. Para me divertir, identifico os corredores que não vão acabar de certeza. Aquele japonês tem uma mochila XXL mal adaptada ao corpo a saltitar, vai ficar todo assado. Aquele já está a ofegar e todo vermelho. Aquele vai demasiado lento. Aquele demasiado fresco e não tem protecção. Este é muito gordo. Aquele muito alto e musculado demais. Sim, eu encarno o espírito do trail.

Passo algumas dezenas de corredores. Primeira subida para Le Delevret que sobe sobe sobe e está descrita a subida. Pouco técnica, tudo com bastões. Está uma temperatura agradável. Tudo vai correr bem. Vejo o grande Senhor Ribeiro! Cumprimentos efusivos. Vai tudo correr bem. Primeira descida para St. Gervais… talvez a pior da prova. Não sei se foi do peso todo do equipamento. Achei-a mais violenta que o habitual, como se eu estivesse pesado e desengonçado. Não ajuda começar logo com algo muito a pique até St Gervais, são 1000m de desnível negativo para aquecer. Sinto uma impressão no joelho direito num degrau mais alto: a picada do escorpião. O meu destino talvez estivesse selado logo aqui.

Chegado cá abaixo sinto que foi duro demais e tenho os quads algo moídos. Vai seguir-se a subida para Les Contamines a 2500 metros. É estranha a sensação de iniciar uma subida a 800m e saber que nos levará tão alto e para o tal mau tempo. Como se pisássemos os degraus de uma escadaria que nos vai levar a um sítio mágico. Lembro-me do conto do João e o Pé de Feijão. Os Alpes são isto, caminhos que nos levam para paisagens extraterrestres que se vão transformando à medida que a temperatura baixa e o ar fica mais rarefeito.

Os corredores seguem de forma muito compacta. A noite começa a cair. Há um silêncio sepulcral a contrastar com outras provas.

Interrogo-me sobre o motivo de tal silêncio e concluo que deriva de duas coisas, uma a intimidação que nos provoca a ideia de irmos para os Alpes numa prova como o UTMB em que nos sentimos todos observados e avaliados, e outra o facto de serem nacionalidades tão diferentes e pouco entrosadas, especialmente orientais a dar com um pau, japoneses sobretudo, mas também chineses.

A partida foi dada às 18:30. São perto das 21h e ninguém acende frontais embora esteja escuro. Finalmente os frontais começam a acender. Vistas espectaculares de uma fileira de 2000 luzes pelos alpes, a serpentear.

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São algumas das imagens, entre muitas, que não se conseguem explicar. A noção de escala das coisas fica reforçada por esta corrente humana e os trilhos transformam-se numa longa decoração de natal Agora vão ter de me desculpar, mas tenho algumas brancas na memória e não me lembro bem do Col do Bonhomme. Mas sei que foi aqui pelos 1800 metros que finalmente achei boa ideia vestir o casaco e tive a primeira amostra de frio. E foi aqui que eu e o meu casaco novo Marmot Adonis iniciámos uma relação que durará para sempre. As sapatilhas em goretex foi mais tarde depois dos 80kms, com a muita chuva. Uma das minhas mais fortes memórias de infância são os longos passeios a pé com os meus pais e os cães no inverno, no campo. A sensação de uma chuvada valente e o som dos pingos num carapuço. As botas de borracha a chapinhar em poças de lama. Senti que agora estava a viver uma super-versão da minha infância. Em vez das botinhas de borracha tinha umas modernas Ultra Raptor. Em vez de um “kispo” qualquer com o patinho bordado, era um casaco pro de montanha. Em vez de uma cana arrancada da berma, dois bastões de carbono. E os Alpes comparados com os montes da zona Oeste? Só ali, ia subir o equivalente 3 serras de Montejunto numa só subida. Como me acontece sempre nas provas comecei a ficar emocional e com saudades imensas, a pensar nas pessoas de quem gosto e como sou privilegiado por ter saúde e por poder viver estes momentos etc. etc. Esta lamechice pegada é algo que me acontece em provas e que, como os enjôos, ainda não consegui resolver a cem por cento, mas estou melhor.

(foto da organização)

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As árvores começaram a rarear. Sim, lembro-me. Um vento gelado, nevoeiro muito intenso, tão intenso que praticamente não via nada com o frontal aceso.

(foto da organização)

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O campo de visão emoldurado pelo capuz, gotas de chuva iluminadas pelo frontal,  nuvens da minha respiração no ar cada vez mais frio como se eu fosse uma locomotiva a vapor a trepar pelos alpes. Os corredores seguiam muito perto uns dos outros numa longa e interminável fila. O percurso aqui subia a doer. Já havia ko’s técnicos nas bermas, vómitos. Nunca estamos sozinhos no UTMB, há sempre corredores e mais corredores. Um dos problemas disto são os sonoros puns a perturbar a reflexão filosófica.

No início com alguma timidez (um francês disse a outro “Santé” mas ninguém das outras nacionalidades se riu). Mas depois os corredores percebem que nunca vão ter privacidade. Nunca. Vão ser 40 e tal horas sempre com alguém por perto. E começam a dar puns também. E é isto o UTMB. Também teve lama, pedras, passagens por pequenos riachos. E sempre a curiosidade de ver onde aquilo nos ia levar. Olhava para o relógio e via a altitude a aumentar lentamente, passo a passo, em direcção ao topo mais exposto.

A respiração ia mudando, os ouvidos a estalar com a pressão a baixar. Subir em fila tinha a vantagem de impor um ritmo e tirar qualquer vontade de acelerar ou travar da equação. Era simplesmente parte de uma engrenagem humana.

Tenho um problema com relatos lineares, varre-se tudo da memória, ficam impressões. Só me lembro da descida seguinte que fiz a voar. Sei que cheguei aos 42km fresco e bem disposto. Lembro-me porque é a marca da maratona e acho sempre engraçado nas ultras quando passamos pela marca da maratona e faltam mais de 100kms neste caso. Normalmente nas ultras tenho sempre um mau bocado pelos 20-30km e depois assento, mas aqui ia com 42 e bem. Muito cuidadoso com a comida para tentar evitar ao máximo enjoos.
Gostava de fazer relatos lineares mas não consigo. Primeira noite foi monótona e está a dissolver-se ainda mais na minha memória, daqui a 24h só com hipnose regressiva.

O nevoeiro não ajudava a fixar detalhes. Trata-se de correr em plano e descidas e andar com bastões em subidas. Vocês que não fazem ultras não conseguem imaginar certamente o que é estar uma noite inteira em movimento. Sei que chegámos ao fim da primeira noite e fui invadido por uma grande euforia. Aqui lembro-me. Primeiro o céu começou a aclarar e os picos a desenharem-se debaixo das nuvens cor de chumbo. Foi nesta fase que vi a paisagem mais brutal que já vi desde que ando nos trails, a subir ao Col de La Seigne antes dos  2500 metros. Olhei para baixo para o trilho a serpentear com centenas de corredores, em fila… e para cima, mais outros tantos… Começou a nevar e fomos fustigados por um temporal impiedoso. Ao fundo o Monte Branco enorme, uma desproporção de escala impossível de entender. Cada passo era uma conquista. Todos seguiam em silêncio e meditação perante aquela imagem que se revelava num acorde de um órgão daqueles que há nas catedrais e basílicas que quando nos sentamos lá a tocar o Enola Gay ou o Final Countdown vem logo um padre a correr e a barafustar. Que nascer do sol! Filtrado pelas nuvens de trovoada, uma luz amarelada, baça, ameaçadora, o branco da neve, o negro e castanho das rochas e dos glaciares sulcados e rugosos, prateados dos raios de luz… Senti-me transportado para as histórias de aventuras e exploração de ambientes inóspitos. Como é raro sentir algo assim e como é bom.

Também senti um cansaço forte mas segui no ritmo dos outros todos. Ninguém ultrapassava ninguém aqui. No topo, a tempestade estava extrema para os meus padrões, mas não para o dos dois senhores da organização que ali estavam para ver se alguém estava em apuros. Riam e conversavam aos gritos, ao pé de uma tenda refúgio de emergência ali montada. Posso dizer que adorei esta sensação. De facto a tempestade mais extrema viria na ascenção ao Gran Col Ferret, mesmo antes de chegar ao Refuge Bonatti, 30 kms depois e essa já me impôs mais respeito.

Devido às condições do tempo a organização cortou a subida às pirâmides calcárias e descemos imediatamente para Lac Combal. É estranho falar em descer nesta fase. Lac Combal fica a 2000 metros e a seguir vem outra subida a pique para a Arrete do Mont Favre. Confesso que só me recordo de muito vento, muito frio, e embora eu estivesse confortável, o avanço nas subidas fazia-se a conta gotas. O genérico do Game of Thrones não me saía dos ouvidos e fazia piadas parvas mentais a imaginar-me a aparecer na Wall vestido com o meu casaco Marmot e os meus bastões “Olá, tudo bem John Snow?” Muita gente a passar mal aqui, muitos white walkers.  Na descida para Col Checrouit fui rápido, eu os outros, a fugir do frio, no limiar de começar a arrefecer. À medida que me afundava no vale, mais abrigado do frio ficava. Parecia estar a descer de volta ao planeta Terra.

A água nos meus bidons estava gelada demais para se poder beber há algum tempo, de modo que já estava a entrar em território de desidratação. Quando bebia, sentia enjoos. A vista antes de Col Checrouit, dramática, com vale glaciar estilo Lord of The Rings assim como quem vai para Mordor por Rohan, mesmo antes de chegar a Rhovanion vira-se à esquerda e é logo ali. Sentimo-nos tão pequenos… tão hobbits.

E então cheguei ao paraíso. O refúgio Maison Vieille em Col Checrouit. Aproveito só para anunciar que até aqui e à minha desistência não houve qualquer parte assada. Isto para aqueles que se divertem com detalhes escatológicos e infantis em relatos desportivos. Voltando ao relato. Que refúgio este. Que turistas vêm aqui parar? Uma vista esplendorosa, chaise longues, mesinhas de madeira, uma mama italiana (estávamos na parte italiana do percurso) com um grande calderão de penne, molho bolonhesa, queijo ralado, fiambre… senti-me tão feliz.

fotos tiradas da net, não por mim


Foi de longe o melhor posto de abastecimento da minha vida. E incluo nisto a minha vida toda, não apenas o trail running. Incluo todas as situações em que tive frio, fome, desgostos de amor, ressacas, depressões e cheguei a um qualquer local em que todos os problemas se dissolveram. Conseguiu ser melhor que a kebab house em Londres ao nascer do sol depois de uma noite decadente no Factory. Melhor que as almondegas do ikea numa quarta feira de saldos em mobília de quarto no inverno véspera de Natal. Agora que penso nisso, acho que toda a minha vida foi apenas o resultado mecânico da engrenagem de um relógio para desembocar naquele caldeirão de penne fumegante nos alpes italianos, naqueles raios de sol por entre nuvens, a dar-me tréguas. Comi tanto.
Claro que depois, na descida para Courmayeur, me ia vomitando todo, mas não falemos nisso.
No global é uma descida non-stop de 1200 metros. Aqui a geografia é extrema. Tudo é exagerado, é tudo sobe, sobe, sobe, desce, desce, desce. Nos Pirinéus ou na Madeira é um pouco mais Sobe sobe, desce, desce. Em Portugal é sobe, desce.

Chego a Courmayeur, uma pequena vila. Era aqui o ponto do drop bag. Sentia-me muito bem, fartei-me de ultrapassar corredores, corria forte e saudável e acontece-me sempre isto antes de quebrar de forma catastrófica. Mas 80kms and going e… Ainda estão aí?
– Sim *bocejo*
Deram-me o dropbag e não tinha a certeza sobre o que fazer. Tinha mais de 90 minutos de folga para o tempo de cut-off. Entrei lá e era o caos! Uma espécie de pavilhão barulhento e completamente desorganizado. Uma fila enorme para refeições, agradeci ter comido a massa lá em cima, aqui era impossível. Zero chuveiros. Enfim, qualquer provazeca em Portugal mete chuveiros e estes tipos nada. Arranjei um canto minúsculo para me vestir, mas era o caos à minha volta. Comecei a pensar em mudar as meias e as fitas adesivas, descalcei-me para deixar os pés respirar um pouco. As sapatilhas em goretex tinham este defeito, só funcionam mesmo bem quando está frio e chuva. Bastava o tempo ficar seco e/ou mais ameno e sentia calor nos pés. Pensei em trocar pelo outro par de Ultra Raptors, as normais, mas nesse momento alguém da organização avisou todos os corredores que o tempo estava muito extremo no gran col du Ferret. Isso fez-me ficar com as goretex. Ia pelo menos trocar a base layer e a t-shirt técnica. Infelizmente não vi sítio nenhum para trocar os calções e os boxers de corrida ensebados de vaselina. Examinei os pés e parecia tudo bem, por isso voltei a colocar as meias. Coloquei o relógio garmin a recarregar com o powebank, troquei a bateria do frontal para me preparar para a 2ª noite.

Nisto, um detalhe fatídico: Com a confusão de não ter espaço e destas trocas todas, perdi a minha caixinha dos medicamentos e neles os voltarenes. Estou convencido que 2 ou 3 voltaranes e era finisher. Se a primeira dor na meio da primeira descida foi como a picada de um escorpião cujo veneno ia começar a invadir o meu sistema ao longo de 20 horas, aqui perdi o antídoto sem o saber.
Arranquei e dei início a uma das piores subidas, para o refúgio Bertone, quase 1000 metros a pique non-stop. O início fez-se por asfalto. Não tenho grande memória desta parte. Sei que falei com pessoas, discutimos a prova. Achei muito parecida com a saída de Curral das Freiras na Madeira. Mais uma vez é a experiência de ir subindo por asfalto, depois caminho, depois single track e passado uma ou duas horas estamos na montanha. Esta subida ia levar à cota 2000m no refúgio Bertone, depois um longo e interessante single numa encosta até ao refúgio Bonatti. Sentia-me fraco, talvez tivesse exagerado nas descida para Courmayeur ou então era a digestão. Aqui levei com a chamada marreta. Acançava a muito custo. Não me lembro do refúgio Bertone.
À medida que nos aproximámos do refúgio Bonatti o tempo foi piorando. O vento tornou-se gelado e vi nuvens a avançar pelo vale. Antes de curvar para um vale aberto, abriguei-me e pela primeira vez vesti as calças impermeáveis por cima das meias e dos calções. Ajustei as luvas e o carapuço do meu fantástico casaco Marmot, o Adónis, não sei se já vos falei nele? Bem, enfrentei o touro pelos cornos e fiz-me ao caminho. Aqui começou a hecatombe de hipotermias. Francamente não percebia o que se passava na cabeça de vários outros corredores que continuavam vestidos como se estivessem 25 graus, a caminho do inferno gelado. Não tinham o equipamento obrigatório? Estavam visivelmente enregelados, a tremer. De repente chuva forte misturada com neve e depois só neve, mas uma neve granizo, bolinhas pequenas que estalavam contra o corpo e no carapuço. Alguns mais desesperados meteram-se a correr num último esforço para subir uns 200 metros até ao refúgio Bonatti, mas era inútil.

O refúgio mas num dia de bom tempo!

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Quando eu ia a subir vi dois enfermeiros com oxigénio a descer a correr para salvar alguém em sérias dificuldades. Aqui passou-se o episódio com a Verónica Bravo e o runner dinamarquês. Vou postar o que escrevi no facebook:

Nunca julguem uma pessoa pelas aparências. A chegada ao refúgio W. Bonatti foi épica, ventos ciclónicos, neve / granizo a picar como agulhas geladas, genérico do Game of Thrones… Nisto está uma atleta a tentar explicar-se em espanhol a pessoas que só percebiam francês ou italiano. Tinha princípio de hipotermia e das duas uma, ou a deixavam abrigar-se ali algures e a levavam depois, ou arranjavam alguém para a levar ao próximo posto, mas não podia ficar ali a gelar. Estava um bocado lixada. Servi de interprete, disseram-nos que o próximo posto era próximo e que de lá haveria transportes (30 minutos depois vimos um heli do INEM lá do sítio a aterrar para levar alguém em mau estado). Eu hesitei um bocado, pensei que ela estava meio ko, que me ia atrasar imenso ao colapsar a meio… Ofereci-me para a levar, informei a organização, todos contentes. Começamos a ascenção ao Ferret e eu todo pai galinha como se ela fosse uma criança, a arranhar o meu espanhol. Quieres my cobertor de emergência? Embrulha-te en el. Tienes frio? Estamos indo muy rapidito? E ela sempre muito séria tipo “anda lá com isso”. Eu corria, olhava para trás e lá vinha ela. Para pessoa a “hipotermar” ela estava bem rápida. Na conversa às tantas explica-me que era corredora de elite e que estava 3 horas atrás do planeado. Ainda tive tempo para salvar um dinamarquês que adormeceu na berma debaixo da chuva e neve (queria boleia de heli, também). A justificação do dinamarquês para escolher o pior sítio possível para se deitar foi “não conseguia ter os olhos abertos, mas ia só aqui dormir 2 minutos, depois acordava”. Às tantas era eu e os meus enjoos e joelho, ela enregelada e o dinamarquês sonolento com death wish. Era chilena. Falei-lhe naquela ultra que quero fazer, a da patagónia e ela “arranjo-te uma inscrição para isso!”. E eu ok! No outro posto ela recuperou a 100% e contra todos os meus avisos e recomendações, quis continuar em prova. Desejámos boa sorte um ao outro. Entretanto vejo que despachou a prova em 42 horas. E que é de facto uma corredora de elite chilena da North Face, a Veronica Bravo, que ganha coisas.

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Consigo compreender alguma irritação dela com o eu paternalismo do “estou a ir rápido demais?” e a exclamação dela às tantas “soy elite runner”, tipo “pah, estás no UTMB não vês notícias de trail!?” Isto para eles deve ser um bocado como alguém que não segue futebol dizer ao Cristiano Ronaldo “ai joga à bola? que giro, o meu filho também” Repetiu-se o mesmo quando entrei na carrinha da organização para voltar para o hotel. 

Em Arnouvaz, no posto, estavam a controlar toda gente e não deixavam ninguém passar sem o equipamento. A subida para o Gan Col Ferret e toda a secção até La Fouly estava muito extrema. Fiquei apreensivo porque eu pensei que já tinha passado por algo extremo e não os vi preocupados… Muitos ficaram barrados. Achei impressionante. Fazia parte do equipamento obrigatório caramba. Não sei o que passa pela cabeça de alguém ir correr para os alpes, ter equipamento obrigatório que não é nada de especial (luvas, casaco impermeável, calças imperméaveis), ver todos os buletins a avisar de temperaturas -10 e neve e chuva e mesmo assim conseguirem armar-se em chicos espertos. Enfim.

Infelizmente deixaram-me passar. Estou a brincar. Ou não. Mas aqui estava enjoado. Custou-me comer, tanto que não comi nada. Experimentei um pouco de cola e ia vomitando. O posto era abafado, com um aquecedor a gás no meio e só queria sair dali antes de começar a transpirar. À apreensão com o clima também começou a apreensão com a energia que me podia faltar a meio. Arnouvaz era o ponto ideal para desistir, era uma vila, tinha transportes, apesar da forte chuva estava “civilizado”. Dali ia subir para sítios inacessíveis e não podia simplesmente desistir e acabar com tudo. Pensei na minha filha. Quando comecei a ascenção ao Ferret ainda mais apreensivo fiquei. Parecia não ter forças nenhumas. Tinha de pensar seriamente se queria continuar. Pensei uns minutos no sentido da vida e em como aquilo encaixava nela. Para quê? Para quê fazer-me passar por isto quando podia voltar para trás, para as luzes de Arnouvaz e um autocarro quente para Chamonix e uma cerveja e queijo numa brasserie.

Duas fotos do col ferret, mas não tinha nada a ver com isto ok? Muito pior.


Por fim sentei-me aninhado contra uma rocha grande e tentei comer uma geleia de fruta para ver se renascia. E pensei nas coisas. Pensei imenso. Eu a pensar:

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Ouvi uma voz ca dentro: Muitas vezes vez  as coisas como binárias, Lourenço, acabar, não acabar, perder, vencer, viver, morrer.. É mais fácil teres uma vida normal e abrires uma excepção de 46 horas para algo extraordinário e binário como o UTMB que se acaba ou não do que uma vida de pequenas decisões binárias que envolvem treinos e dedicação numa rotina invisível, sem a consagração espectacular no fim para afagar o ego. Foste consumido pelo orgulho pela crença que já tinhas o suficiente para concluir esta prova porque já concluíste uma igual. E agora a verdade vem ao de cima. Pergunta-te: por que razão pensas desistir? Tens algum problema grave? Não seguem os teus companheiros encosta acima, alguns em pior estado do que tu? Sabes bem que a fraqueza nunca é um motivo de desistência numa ultra porque é possível renascer dela com comida e repouso e é peciso ter paciência. Não te projectes no topo da montanha. Dá apenas o próximo passo e o outro a seguir. Concentra-te na respiração e postura. Esquece-te do tempo e viaja. Ajuda os outros. Vai.

Fui invadido pela convicção de que ia chegar ao fim.
A goma fez-me milagres, senti-me a renascer, apesar de lutar contra náuseas e vómitos. Sabia que um DNF a chegar tinha de chegar como algo inevitável que nem surgia como um debate interno sim não. Levantei-me e continuei, mas a subida parecia interminável, perdia-se no nevoeiro e na neve e o meu ímpeto esmoreceu. A cada curva, mais subida, mais subida… quando o nevoeiro dava tréguas via corredores pequeninos como formigas muito lá em cima e desanimava. Às tantas só olhava para os meus próprios pés ou para os pés do corredor da frente. Aqui desistências, corredores a voltar para trás. À medida que subíamos o tempo piorava e tínhamos a clara noção que estávamos por nossa conta. Era proibido parar e impossível ter um abrigo, era um caminho exposto. Às tantas vejo o dinamarquês de novo aninhado na berma em posição de quem quer ter uma hipotermia e morrer, mas desta vez já estava um corredor a dar-lhe nas orelhas. Tentámos convencê-lo a voltar para Arnouvaz mas ele disse “fuck that, no way I’m giving up”. Não sei o que lhe aconteceu, mas tinham passado apenas umas 24h e ele já estava assim ko de sono, não augurava nada de bom para a 2ª noite em branco.
Cheguei aos 2500 metros ainda de dia, o col Ferret, mas debaixo de uma névoa e tempestade. Na crista da montanha ficámos expostos ao vento de norte. Achei esta parte divertida na verdade, mas queria sair dali o mais depressa possível. Foi nesta descida para La Fouly que o joelho começou a acordar e a doer cada vez mais. A dor era familiar. A mesma que tive há 3 anos numa prova de trail e que passou com um voltarene – foi assim que os descobri, um companheiro deu-me um e desde então levo de reserva para ajudar quem precise.

O segredo:

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Aqui ainda me faltava muita descida até ao final da prova. Experimentei tudo. Descer sempre com a perna esquerda primeiro, correr com a perna direita de lado estilo pedinte romeno a fingir que é aleijiado, bastões como canadianas, bastão como bengala aristocrática à Maestro Vitorino de Almeida, pé coxinho à Sassi Pereré, às arrecuas estilo Michael Jackson moonwalk, perna ao peito à Kilian Jornet na Hardrock… Quando cheguei a La Fouly vinha bastante frustrado mas com esperança que me dessem um anti-iflamatório. Expus o problema, mandaram-me para o posto médico. Entrei e havia meia dúzia de embrulhinhos dourados com pessoas lá dentro a tremer de frio e cansaço. Mais uns quantos côxos e eu e um italiano a queixarmo-nos dos joelhos. Veio a médica suiça e eu expliquei-lhe o que tinha e o que precisava.

A senhora recusou-se a dar-me a porcaria de um voltarene. Toda contente e convencida que tinha salvo uma vida, falou-me da falência renal. Expiquei-lhe que não estava a pedir um anti-inflamatório corticóide, e com aquele frio todo não me sentia a sofrer de desidratação e que esses problemas são críticos em altas temperaturas, não naquele tipo de condições. Além disso sentia-me “bem”. Não ia desistir.

O italiano maricas disse que queria ser visto pelo fisioterapeuta que lá tinham, talvez à procura de uma justificação para um DNF. A médica também me queria dirigir ao fisioterapeuta mas eu recusei. Sabia o que tinha. Uma infamação na ilitobilial. Já a tive. Sei que não é uma lesão “grave”, é uma inflamação de nada, mas que causa uma dor como uma agulha a enfiar-se pela perna. Um voltaren e puff até ao fim da prova.

Acedeu a dar-me 2 benurons de 1gr para tomar de uma vez. Achei estranho porque no meu livro 2gr disto são tão maus ou piores para os rins que um voltarene, mas estava por tudo. Tomei-os e segui viagem, a coxear, pelo asfalto. Aqui senti frio a sério pela primeira vez. A paragem fez-me mal. Fiquei no posto quente e ao sair para a chuva e o frio todo eu tremia. Seguiu-se uma longa parte de asfalto antes da subida para Champex e foi neste troço que comecei a concluir que a dor não ia passar. Dig-se que ia perguntando a corredores se tinham anti-inflamatórios. Ia em 130kms e 7500km. Não stressei demais. Estava apático. Ia experimentando posições com a perna. Por vezes parecia passar e pensei que os benurons fariam efeito, mas as descidas eram incomportáveis. E ainda me faltariam 3 descidas de perto de 1000m cada uma, bem técnicas. Não sei se era impossível. Sei é que passou a linha do razoável. Não queria a merda do colete do UTMB ao ponto de me arrastar mais 35kms com dores daquelas. Ficou claro para mim. Depois deixava de ficar, as coisas pareciam melhorar, mas estava em asfalto plano e consegui andar bem. Assim que tinha uma rampa a descer ou degraus, concluía de novo que era impossível, até que me forcei a mentalizar que tinha acabado, que só tinha de chegar ao próximo posto.

Tomei a decisão de desistir na subida para Champex e aqui passei o pior bocado de sempre nas minhas provas. De sempre. Pensei que estava quase no abastecimento porque me disseram “é já ali!” a apontar para umas luzes numa encosta. Mas o já ali era uma subida interminável por um trilho técnico lamacento aos zigue zagues que nunca mais acabava.

Só conseguia usar a perrna esquerda. Um pé de cada vez. Degrau a degrau, apoiado nos bastões. Nisto, iam-me passando corredores. Dezenas. Centenas. Tomei mais consciência de onde estava na classificação, como me aconteceu com o MIUT. Caras que nunca tinha visto. Passavam por mim. Reforcei a minha impressão do UTMB, é quase sempre cada um por si. Em tantos corredores só 2 perguntaram se estava bem. Às tantas desisti de mendigar um antiinflamatório, alguns nem respondiam. Com as alucinações do sono tinha sempre a impressão de estar a chegar ao fim. Olhava e pareciam-me luzes de um automóvel e eu concluía: é uma estrada, estou a chegar. Na verdade eram apenas fitas de marcação. O percurso lembrou-me o Castelo de Kafka, como o personagem principal sobe uma montanha para chegar a um castelo no topo, mas nunca lá chega, acontecem sempre coisas, contrariedades, como um pesadelo, ilusões que se desfazem sucessivamente, e em vez de ir para o topo parece que ficamos sempre no mesmo sítio às voltas e voltas. Assim era o meu desespero agravado pelas alucinações, ainda assim muito mais ligeiras que as da Ehunmilak. A pior foi mesmo voltar-me para trás e ver um camião a avançar direito a mim trilho acima. Eram só dois corredores lado a lado, de frontais acesos. Já não tinha pressa, mas duvidava que aquela subida tivesse fim. Por vezes o trilho voltava a descer e eu dissolvia-me em desespero e frustração. Outras o trilho guinava para longe da direcção das tais luzes mágicas da casa que tinha visto. Estava furioso. Nisto comecei a ultrapassar zombies ainda piores do que eu se isso é possível. Passei por um japonês que mal se aguentava em pé. Perguntei-lhe se estava bem. Achei arriscado, ele cambaleava e o trilho era estreito, com ravinas a pique. Respondeu que não. Disse-lhe que ia desistir, podia acompanhá-lo e ele “no give up” e eu ok, tchau (chegou bem depois do tempo de fecho a champex mas tudo bem, hara kiri como deve ser). Essencialmente ia sendo passado e passado e passado. Dezenas, pareciam formigas a atacar-me.

Fiquei fascinado. Tinha perdido uma eternidade naquele trilho, no posto médico e ali estavam aqueles corredores, no limite do tempo limite, a arrastar-se. Para quê tudo aquilo? Que nexo tinha? Queriam mesmo ser finishers assim tanto?
Tu começaste mas foi a duvidar se não estavas a ser cobarde por desistir enquanto que eles não paravam.
Pronto, já cá faltava o caro leitor e a sua voz irritante. Pensei que tinha adormecido no conforto do lar. Ora bem, não, não. O que me fez foi reforçar a minha convicção porque eu também sou assim. Alguns podem ter tido azar e a prova correr-lhes mal. Vómitos, entorse, hipotermia, bolhas lesão. Mas não TODOS. Aquilo, aquele último bocado da prova eram pelo menos 95% de corredores cuja expectativa normal e esperada e certa e assegurada era aquele nível de sofrimento no limite das barreiras de tempo.  Nisso não gostei do UTMB! Valorizei mais a Freita e os seus tempos de corte brutais. Acho bem. Acho bem que uma prova pegue no último terço e feche a barreira e diga “isto é para pessoas que treinam. O senhor vá escolher uma prova mais fácil, treine, e depois venha cá para ver se tem um colete”. Sim. Acho cada vez melhor essa perspectiva, como a da Spartathlon. Porque é preciso treinar, isto não devia ser uma coisa em que um atleta de fim de semana chega lá e pumbaaaaaa, mete 170kms, fode-se todo e é um herói e depois no resto do tempo não treina, não se dedica, não quer, não luta.
Comecei a ter um ataque de paranóia: quanto mais subia mas desconfiava que Champex era a porcaria de um abrigo isolado como o Bonatti onde recusaram transporte à Verónica Bravo. Imaginei o que seria se chegando lá acima me dissessem que tinha de descer a pé ou subir a pé, mas que dali não me tiravam. O que faria? Deitava-me no chão e colapsava?

Não é concebível o meu esgotar de paciência para fazer esta subida enlameada e técnica só com uma perna apenas para desistir. Estava lúcido e só queria perder a consciência e entrar em piloto automático, mas não conseguia. Cada luz, cada mudança de plano, de piso, era um prenúncio de que ia finalmente acabar o martírio e não. Mais zigue-zagues encosta a cima. Por fim civilização. Primeiro foram os ouvidos a receber os ecos. Ouvi um animador francês e som de música techno a acolher corredores. Depois vi luzes de estrada. Um automóvel. Chão liso de asfalto. Nem queria acreditar. Desconfiei de uma alucinação mais forte e só não me ajoelhei a apalpar a estrada porque o joelho não deixava. À medida que me aproximava do posto, mais me parecia um sonho. Era enorme e cheio de luzes… Havia espaço lá dentro, comida fumegante, um bar com cervejas, autocarros ao pé, vim um a descer cheio de gente embrulhadinha em papel de prata dos cobertores de emergência…. Disse ao senhor da organização que me acolheu: “quero desistir. O meu joelho…”. Ele fez-me algumas perguntas para ver se tinha mesmo a certeza. Sim. Cortaram-me o dorsal e deram-me como DNF. Explicaram-me que saíam autocarros para Chamonix de xis em xis tempo. Deram-me os parabéns, um rapaz jovem, um senhor e uma senhora de idade, todos voluntários. Mas parabéns porquê, desisti? Mas chegou até aqui. Boa tentativa, mas não resultou.
– Também não sejas assim, Lourenço, é de louvar, sempre marcam 135kms e 7500m no teu relógio. É mais do que um MIUT. Tens noção?
Calem-se, a sério, não vão lá com falinhas mansas.
– Mas wow. És um herói! O joelho foi azar.
Não foi azar. Azar seria uma queda ou um entorse. Não esta lesão. Esta é de eu ter 4kg a mais, ter abusado na primeira descida. É de ter ido para uma corrida com um bolso estragado na mochila e ter uma complicação logística para colocar a caixinha dos medicamentos, é de não ter verificado duas vezes em Courmayeur se tinha tudo em vez de zarpar à pressa, é de não ter insistido mais com mais pessoas por um anti-inflamatório. Mas admito que é experiência. Fiquei pelo menos feliz de não ter um DNF por problemas de estômago ou bolhas. Espero nunca mais ter um por dores num joelho. Um de cada, chega. Não preciso da vossa comiseração
-Qual comiseração, não podes ver as provas como binárias, fiz, não fiz, fizeste o que fizest…
… paternalista que dispenso.

Fui buscar massa com queijo e comi. Comprei uma cerveja e bebi. Observei os corredores que chegavam enquanto eu comia o meu esparguete fumegante. Vi coisas surreais, especialmente nos asiáticos. Estavam super focados, a prova deles era aquela, mesmo a 5 minutos do tempo limite davam ordens à família para prepararem o equipamento. Finalmente fecharam a barreira horária. Iam chegando corredores que ficavam indignados. “Por tão pouco.” Oh raios, então não percebem que vos estão a fazer um favor? Uns ainda se estavam a preparar quando lhes foram dizer “acabou-se”. E enão é que ficaram tristes? Mas o que queriam eles? 50h? 100h de tempo limite?
Voltei de autocarro. Quero abreviar. Cheguei a Chamonix, pedi transporte e meteram-me numa carrinha com outro atleta e a namorada. Ele comentou que não lhe correu bem. Como eram 3 da manhã assumi que tinha desistido e perguntei porquê. Não tinha desistido, tinha acabado há algumas horas entre os tops e estava chateado por não ter feito top 30. Falámos de provas, recomendei-lhe vivamente o MIUT. Só no dia seguinte a googlar é que percebi que estive à conversa com o  Sage Canaday…

sage

Pronto.
O meu amigo João fez umas impressionantes 39 horas com a sua mania que é esperto. Eu acho que assim é que eu devia fazer as provas. Já me dava por satisfeito. O epílogo disto?

Prefiro nos próximos tempos dedicar-me a melhorar. A evoluir e ser mais rápido. Em detrimento de voltar a fazer outra de 100 milhas a apontar para as 40 e tal horas.
Eu gosto disto. Na verdade gostei muito de participar e desta experiência única. Até porque aprendi.

Mas sinto que estas provas pelo investimento que implicam, de tempo e dinheiro, de energia mental, exigem algo mais à prova de bala. Algo mais sólido, mais garantido, mais leve, menos sofrido, mais curto e leve.

Escrevo estas últimas linhas no avião que me está a levar de volta para Lisboa. Amanhã vejo a minha filha e estou morto de saudades. Pensei muito nela. Trouxe-lhe um cão com um cachecol de chamonix, um cão salva-vidas. Para além do senhor tigre que acabei por não levar comigo porque ela disse-me que tinha medo que eu o perdesse na montanha e eu obedeci.

Nota final sobre o UTMB: é uma experiência que recomendo pelo menos para uma vez. Talvez regresse para ser finisher e tudo, mas só se for para acompanhar alguém. Não consigo compreender quem volta a esta prova depois de a terminar… isso, não consigo compreender.
– Também não tens de compreender os outros sempre.
É verdade.

video oficial UTMB

UTMB 2017

20116832_10213710347337775_8797717812311355766_oSer sorteado para o UTBM com o João significou mais do que apenas ser sorteado para o UTBM. Na vida de uma pessoa ocorrem por vezes acontecimentos significativos ou desafios que nos fazem escolher o melhor de dois caminhos. Aliás, dificilmente escolhemos um pior caminho, somos simplesmente levado por ele, por vezes de forma completamente lúcida, mas é como se nos víssemos de fora e não conseguíssemos mudar de padrões. A corrida por diversas ocasiões serviu de caminho que me leva sem eu ter de decidir, como quando deixei de fumar a poucos dias da maratona de Madrid. É como se fosse uma inevitabilidade ou fosse convencido.
Tenho demónios, inscrever-me em corridas é alimentar os anjos. Inscrevo-me. Sei que vou levar uma estalada monumental de quase dois dias nas montanhas. Tem de ser assustador ou difícil ou não resulta. Não tem de ser uma ultra, pode ser tentar bater as 3h numa maratona de estrada. Tem de haver um compromisso público, uma espécie de honra. Quando mete honra já não depende só de nós, não é invisível. Houve pessoas que fizeram sacrifícios por nós, a começar pela minha filha que já não vejo há uma semana e não vou ver mais uns dias por causa da corrida. E então tem de valer a pena. Naquela sexta feira à noite recusa-se o convite, o anjo convence-nos. Dormimos cedo e sóbrios. O anjo fica orgulhoso. Sábado às 8:00 estamos em sintra. O treino monótono de 8 horas consecutivas, duas voltas iguais, mas a compreensão de que se não temos resiliência para fazer o treino não vamos ter resiliência para algo como o UTMB. As endorfinas nas veias, a água no duche a levar terra e pó. E somos felizes e temos paz. Mas no cruzamento no dia anterior, na decisão por um caminho ou por outro, foi por um triz, o demónio quase venceu. Às vezes vence. E o caminho nunca acaba. O mais difícil foi antes e vai ser depois do UTBM. O UTMB é algo puro em que não se decide nada. Há um caminho, é ir em frente, o mais rápido possível. É ir numa torrente de atletas como nós. É a curiosidade de ver o nascer do sol depois da primeira noite. A curiosidade de conhecer os alpes que não conheço. A curiosidade de ver o por do sol antes da 2ª noite. O UTMB é só o início de um caminho e o caminho até lá já me fez passar por momentos de decisão difíceis e horas mais negras. Porque é mais fácil no início quando alguém começa a correr e começa a fazer as suas primeira ultras. Fica enebriado com a súbita revelação de um “eu” que talvez nem com 20 anos de idade existiu. Essa sensação de liberdade é poderosa, especialmente quando o nosso BI e cabelos brancos dizem o oposto. Mas também já tive outro contexto para treinar, mais estável. Este período foi complexo. Já sei, não se pode arranjar desculpas. Continuo a querer a sensação de correr para sempre numa floresta, num trilho húmido, por entre a condensação da face norte de sintra, por entre folhas encharcadas a reflectir raios de luz atlântica, a sensação de descer a face sul de Montenjunto por entre as pedras de um vale glaciar, a sensação de correr nas dunas do baleal, descalço, numa praia deserta, com o salitre na boca e a areia imaculada e estaladiça, a sensação de correr no leito do rio Paivô, mergulhado em água até à cintura, água gelada e doce, debaixo de um sol branco numa terra queimada, a sensação de correr acima das nuvens num vulcão na madeira ou nas cinzas de la palma ou de correr nos caminhos da minha infância na zona oeste onde as vinhas ganham a cor oxidada das memórias, onde vejo ecos de mim em pequeno, do meu pai e da minha mãe jovens, dos cães a caçar, de perdizes espantadas a levantar vôo num fim de domingo de inverno…  como explicar, a sensação. Vou levar um tigre de peluche pequenino que é dela, na mochila. Tenho a sensação que vou precisar do senhor tigre quando estiver à noite com a luz do frontal na monotonia do escuro e quem sabe com chuva. E quero trazê-lo de volta para que conte tudo o que viu e não me deixe mentir. De resto, para o UTMB, a minha preocupação nº1 são os enjoos. Tenho pernas para aquilo e tenho paciência de monje maratonista do monte Hiei. O meu objectivo é acabar. Não esperem grandes brilharetes, se chegasse a meio da tabela já me considerava competente. Mas o meu objectivo é acabar e não passar demasiado mal. Obrigado pelo apoio e boa sorte a todos os amigos que vão participar e que estão a participar noutras provas.

O tracking de atletas pode ser feito no site oficial: http://utmbmontblanc.com/en/live/utmb

uma citação de um senhor que admiro muito:

“I had an opportunity to follow Sakai all night in a car as he was approaching the end of his first 1,000-day alpine rounds,” Yamaori said. “Rather than striding in the mountains, he was flying through the mountains like a heron.
“I remember his two companion dogs obediently waiting by his side while he stopped to chant a sutra and say a prayer during the practice. His face had an affable and merciful look. That was a spectacular scene.”
-22-
Genshin Fujinami, Sakai’s disciple and chief mourner, has also completed the 1,000-day alpine rounds.
After an early life of war and pain, followed by exhausting journeys through the mountains, Sakai spent the last days of his life at his Imuro Fudodo Chojuin temple in Otsu.
Regarding his practice, Sakai has said: “Human life is like a candle; if it burns out halfway it does no one any good. I want the flame of my practice to consume my candle completely, letting that light illuminate thousands of places. My practice is to live wholeheartedly, with gratitude and without regret. Practice really has no beginning nor end; when practice and daily life are one, that is true Buddhism.
– podem ler tudo aqui Marathon Monks of Mount Hiei

MIUT 2017 – relato

Relato MIUT

Este relato é muito técnico. Não contém apontamentos literários e de comédia para efeitos de entretenimento, tais como partes esfoladas e outros pormenores do estilo grosseiro ou de revista. É verdade que há efectivamente um atleta português que logo na subida para os Estanquinhos exclama alto e bom som: “epá foda-se já me caguei todo”, mas isso é uma excepção e uma prova deste nível não é feita de momentos assim. O meu frontal e o dos cerca de 50 atletas em fila indiana compacta iluminaram o infeliz, a 2 metros do trilho, enfiado entre arbustos com o à vontade de um veado encadeado. Percebi que ia tentando remediar os estragos. Os amigos algo embaraçados revezaram-se na distribuição de lenços de papel ao infeliz que se justificava “…e fui à casa de banho umas três vezes antes e nada, agora chego aqui e cago-me todo”.

Foi um momento de entretenimento. Este relato é destinado a quem? Não sei. Li agora mesmo o relato do amigo Pedro Baptista com quem fiz os últimos kms da Ehunmilak e que terminou isto em 21h29m. A impressão que ele tem da prova (que já terminou 3x) é bem diferente da minha.

Este relato é destinado especialmente a trail runners no segmento entusiasta / sério com a mania, mas não assim tão bom como o Pedro ou o meu amigo João, pessoas que acabam o MIUT na casa das sub 24h na boa.

O MIUT tem 115km e +7100m de desnível positivo. Atravessa a ilha da Madeira de Porto Moniz a Machico. A partida é dada à meia noite. O tempo limite é de 36 horas. O piso é muito técnico. As temperaturas e altitudes oscilam entre o nível do mar e os quase 1700 metros. Para dificultar mais as coisas, este ano a prova contou com cerca de 500 atletas franceses que falaram francês e que foram franceses durante o percurso. Também houve pelo menos um espanhol que logo nos Estanquinhos se virou para mim a procurar confirmação de que era “real” o que lhe estava a acontecer. “Puta madre!” diz-me ele a beber isotónico com a mão a tremer e eu a pensar  “pois é espanholito, querias caramielos, era?” e foi assim este diálogo europeu entre povos do sul, contra a austeridade.

Como é sabido de todos no planeta, desisti desta prova em 2016, na Portela, sensivelmente ao km 98. Voltei de novo para encerrar o MIUT e encerrei, faço já aqui um spoiler. Teria desistido de novo não fosse ter desistido em 2016. É que eu tenho duas coisas que recomendo a todos os ultra runners, duas forças genuínas. E são elas o orgulho e a vergonha na cara. O ultra runner que tenha uma fonte inesgotável de orgulho e vergonha na cara não desiste de nada a que se propõe de forma pública.

Este ano fui sem o meu companheiro João Paiva que, tendo já completado com distinção o MIUT em 2016 me fez um educado mas assertivo manguito quando lhe propus repetir a dose. Compreendo-o.

Encontrei-me assim de novo em Porto Moniz, às 22h e pouco, deitado num montinho de relva, a dormitar, alheio à confusão e excitação da partida.

Estava alheado da excitação do MIUT e de tudo à minha volta. Já era a segunda vez que tentava o MIUT Parece que como já sabemos que vai ser mau, não temos expectativas que não seja. Somos aquele veterano de guerra que é enviado de volta para a linha da frente por um erro burocrático e que já sabe ao que vai e que enquanto os jovens inconscientes cantam e fazem brindes no porão do navio, ele fica apenas numa cama de rede com um cigarro a contemplar as estrelas pela última vez… Isso ou então foi dos 2 valdispers que tomei no dia antes.

Dica prática MIUT #53: a prova começa à meia noite. O tempo de conclusão da maior parte dos atletas é para cima de 24 horas. Como tal vão experimentar sonolência no fim da prova. É importante ter o sono em dia. O uso de drogas do tipo barbitúricos é recomendado para dormir bem na véspera e se possível meter umas sestas. Em 2016 estava mais excitado que uma menina na véspera de um concerto do Justin Bieber. Fiz quase directa na noite antes. Aconteceu-me o mesmo na Ehunmilak, o que resultou em praticamente 3 directas consecutivas, com alucinações jeitosas. Não há necessidade. Pensem que há pessoas com vidas normais que precisam de ansiolíticos e barbitúrios diariamente porque não conseguem lidar com a vida normal. Vocês vão fazer uma ultra de 24 horas ou mais: merecem o calmante.

Finalmente tirei a roupa, bebi um shot de cafeína e entreguei os sacos ao som do Bailinho da Madeira, uma melodia que a espaços me entrou na cabeça e não saiu, torturando-me. Entrei com calma no “curral” dos corredores. Este ano nem verificaram o material, limitaram-se ao controlo zero. Vi o primeiro desclassificado do dia, um espertalhuço que saltou a vedação para conseguir vir cá para a frente. Ao fazê-lo falhou o controlo zero à entrada. Eu ia avisá-lo mas ele era francês.

Dica #45: não liguem ao engarrafamento inicial. Aqui divirjo dos cromos. Se querem fazer mega tempo força nisso. Se são pessoas normais, tenham calma. O meu erro em 2016, como sou rápido em downhill, foi pensar que tinha de me chegar à frente até ao Fanal para fazer a descida à vontade. Este ano sentia-me relaxado. Senti que não tinha de me despachar, só queria chegar ao fim bem, como se isso fosse possível no MIUT.

Depois de subir ao Fanal e descer a Chão da Ribeira, atrapalhado por tansos com medo das descidas, começa a subida aos Estanquinhos. Acabar ou não o MIUT decide-se na subida aos Estanquinhos antes do km 30. As pessoas tendem a focar-se na pancada monumental do Curral das Freiras para o Pico Ruivo, mas na verdade o massacre que dá o tom para o resto é a subida para Estanquinhos. 1385 metros de desnível positivo em menos de 10km com temperaturas gélidas no topo. A subida é monótona como o raio. Serpenteia. Olha-se para cima e vemos luzes de frontais uns 100 ou 200 metros acima o que é demolidor. Foi aqui que o atleta se borrou. Mas também vemos uma serpente de luzes serra abaixo e serra acima. É uma visão fabulosa. Calma, calma e calma. Logo nos Estanquinhos há desistências.

Tempo para mais um apontamento de humor.

À minha frente seguia uma atleta com calções que tinham escrito VEGAN bem grande atrás. O comentário chocarreiro e de baixo nível atrás de mim não fez esperar, com sotaque do norte:

-Olha, já reparaste ali naquele pormenor?
-Qual?
-Aquele é vegan. Ali não entra chouriço. Só cenoura e courgete.

Fim de apontamento de humor.

No estanquinhos estava bastante público como é hábito, a aplaudir os corredores. É um dos postos mais espectaculares que conheço do trail running, por estar assim a mais de 1600 metros, ao frio, de madrugada, e estar cheio de gente para além dos voluntários, a aplaudir e incentivar. O povo da Madeira é fantástico. Lembrou-me o espírito do país Basco, um espírito que aprecia a montanha.

Segui o mais depressa que pude devido às baixas temperaturas. Céu estrelado, com uma lua em quarto minguante no enfiamento do caminho. Como em 2016, a vegetação com geada e orvalho. Muito frio, o ar gélido e cristalino.

Segue-se a descida para o Rosário, uma das descidas mais técnicas do MIUT. Em 2016 foi um pesadelo devido à lama, este ano não choveu tanto e foi mais fácil. Com o piso bem menos escorregadio caí apenas 1 vez com grande aparato. A esse propósito, caí bem no meio de um monte de pedregulhos pontiagudos e disse “ai” e vieram-me ajudar. Pronto.

Comparativamente com 2016 estava a sentir-me muito bem. Verifiquei há pouco que estava mais lento uns 30 ou 40 minutos. Quando passei a encumeada e cheguei ao posto de abastecimento no Hotel da Encumeada estava mesmo eufórico, pois lembro-me de estar KO por esta altura. Ainda não tinha chegado ao tira teimas. A subida do “pipe-line” antes do Curral das Freiras, ao km 45 sensivelmente. Em 2016 foi aqui que morri. Subi a passo de caracol, ofegando, cheio de calor, sem perceber o que se passava. Desta vez não digo que tenha saltitado como um coelho, mas fiz sem grandes problemas. No fim até assobiei músicas quando o terreno alisou. É uma coisa que eu faço para irritar o trail runner que vai à minha frente. Ponho-me a assobiar o malhão malhão ou o bailinho da madeira, demonstrando que a minha respiração está controlada e normal, enquanto o desgraçado está a ofegar. Resulta quase sempre, a vítima desvia-se irritada só para não ter de me ouvir, eu passo e depois sou eu que ofego para recuperar desta manobra, mas longe da vista. O trail é muito psicológico. É tudo psicológico.

A descida para o curral das freiras é um massacre de calhaus e pó, e de vertigens, mas é o single track mais bonito e espectacular de trail do mundo para quem consiga lidar com as vertigens e olhar. Eu como não consigo só vejo a paisagem no início e depois só vejo mesmo onde ponho os pés. O chão é muito bonito por ali, muito calhau diversificado e o pó é muito bonito, deixa as pegadas bem definidas. Cheguei finalmente ao curral pelas 11:40, mesmo tempo praticamente que em 2016 mas a sentir-me muito melhor. Devagar se vai ao longe.

Vamos fazer fast forward. Sou péssimo em relatos porque na minha cabeça tudo se mistura e fico com uma amnésia. Digamos que a pouco e pouco fui recuperando face a 2016 no posto onde desisti em 2016 ia já com 1 hora de vantagem, o que demonstra como ir mais calmo no início compensa.

Saí do curral com roupinha lavada, banho tomado e barba feita e finalmente preparado para o sol, com boné e creme 50. Em 2016 sofri um escaldão brutal nesta subida. Fui carregando o suunto com o power bank. Esta subida é objectivamente a pior e não deve ser surpresa. Pelos vistos foi para um francês a que expliquei “beacoup de chaleur mon ami, beaucup chaud” e ele “quoi? pas possible!” e eu “mais oui!” Levei um litro de água e safei-me porque este ano foi mais fresco. O ideal é mesmo 1.5 litros de água no percurso Curral – Pico Ruivo. O ano passado levei 500ml apenas. Este ano era obrigatório levar 1 litro e mostrar o telemóvel operacional. Gostei. É preferível incidir o esforço de check up na etapa crítica do que perder tempo na partida.

Esta subida é gigantesca. É interminável. Pronto. Relato da subida feito. Depois ali segue segue segue para o Pico do Areeiro. Há uns túneis, mais escadas, etc. Estava frio este ano, que bem que me soube. Parece que ainda estava a cozer de 2016. Segue segue segue e chega-se ao Pico do Areeiro.

Chegado ao Pico do Areeiro vejo os abastecimentos e um calor infernal no posto cheio de gente. Senti-me claustrofóbico. E com fome, mas de nada daquilo. Começou aqui a sensação de enjoos. Apeteceu-me uma água tónica. Naturalmente fui pedir água tónica. Causei confusão no abastecimento, quiseram dar-me água mineral com gás. Insisti que queria uma água tónica. Pensaram que por água tónica eu me referia a qualquer coisa do “continente”, tipo quando vamos ao norte e pedimos uma “bica” ou uma “imperial” e eles corrigem para cimbalino e fino. Não havia. Fui falar com o director do abastecimento que tinha uma t-shirt a dizer “director do abastecimento”. Havia um café no piso de cima, perguntei-lhe de seria desclassificado se fosse lá comprar comida e ele disse que não, à vontade. Então fui. Entro no bar, discretamente, misturado entre turistas e pessoas que ali estavam para ver o MIUT sem a consciência de que um Deus Grego tinha ali entrado e meti-me na fila. Nisto percebo que é preciso tabuleiro e vou buscar tabuleiro e meto-me na fila de novo. Vejo uma taça de morangos. Não sei o que me deu, mas peguei nos morangos e meti no tabuleiro. Depois foi um ovo cozido. E duas garrafas de água tónica da madeira – Brisa. Na esplanada devorei os morangos e bebi 1 água tónica A outra água tónica foi para uma das garrafas de hidratação e fui bebendo água tónica até vomitar tudo das últimas 12h no Poiso. Não perguntem. Eu sei o que estou a fazer.

Vou saltar esta parte porque é MIUT puro. Não há palavras para descrever. Não há mesmo. Ok, há mas eu tenho preguiça. É uma descida muito grande e que se faz bem. Façamos antes mais fast forward até Ribeiro Frio – Poiso. Saliento um francês que tinha caído e estava a desistir. Tive pena dele, pareceu triste, mas para o fazer sentir-se melhor disse-lhe que a corrida dele tinha acabado e que já me tinha acontecido aussi, mon ami.

eu

Aqui as coisas mexeram comigo. Não tinha qualquer memória de ter feito este troço. Em 2016 estava tão “fora” que nada me ficou na mente, apenas uma branca monumental. Não reconhecia praticamente parte nenhuma do percurso. Sabia que tinha desistido na Portela mas já duvidava, porque para chegar à Portela tinha de passar por ali. Quando cheguei à subida estúpida implacável e insensível de Ribeiro Poiso estava indignado. Que merda é esta? Perguntei a várias pessoas se aquilo era normal, visto que o dorsal não mostrava aquelas subidas. Só tive respostas em francês. Franceses. Imaginem-se ao anoitecer, exaustos, rodeados de zombies franceses…

Já percebi entretanto que a organização do MIUT não está muito preocupada com a escala das subidas e descidas no dorsal, mas enfim. Finalmente reconheci tudo e comecei a ter um flashbach enorme ao chegar ao Poiso. Isto porque os bastões se prenderam nas pedras do caminho, o que me aconteceu em 2016. Só faltava 1 posto de abastecimento para chegar ao sítio onde desisti em 2016: a Portela.

No Poiso já não conseguia meter nada no estômago. Foi aqui que fruto da experiência que me faltou em 2016 e pré Ehunmilak, peguei numa garrafa de água das pedras e bebi dois copos de seguida. Depois fui para as traseiras, dedo na garganta e vomitei a minha alma, lembrei-me das noites no alcântara mar em 1998. Daí para a frente foi chá preto com uma colher de açucar. Mas, basicamente, estava ko.

Nunca mais recuperei 100%. Desci a correr bem até à Portela (onde desisti em 2016), estava fixado em terminar. Toparam o meu estado, deitei-me numa maca, mediram-me a tensão. Deram-me *primperan. E o que me salvou foi a canja mágica. No MIUT não há canja com massa. Excepto aqui na Portela. A canja tinha massinhas. Nos outros postos era só o caldo com umas farripas de cenoura e às vezes arroz cru. O posto da Portela tinha massinhas. Tinha também voluntárias bonitas, incluindo uma rapariga atraente que me tentou dar chá e que quando eu me lembrei de lhe dizer “obrigado” já tinham passado 2 minutos e ela tinha ido embora. Entretanto estava lá um atleta brasileiro que tem um amigo em comum comigo (o ultramaratonista Ricardo Almeida), uma coincidência do caraças. Fizemos a promessa de terminar a prova, sei que ele terminou um pouco antes de mim.

E pronto. Saí da Portela e nesta fase estava em piloto automático. Lembrei-me de no ano passado me ter sentido melhor depois de descansar um bocado e aqui também aconteceu o mesmo. Ainda consegui correr um pouco da Portela para o Larano mas o meu corpo ia fazendo shutdown aos poucos, incluindo sono. A minha cabeça parecia o Windows XP quando se abriam muitas janelas e aplicações ao mesmo tempo. Já só conseguia andar e faltavam mais de 15km. Se fosse o meu primeiro MIUT teria desistido de novo, mas desta vez só queria colocar uma pedra no assunto. A etapa Larano – Ribeira Seca de quase 10km foi talvez a pior de trail running que me lembro de fazer na vida. À minha direita um precipício insondável no escuro, só lhe ouvia o mar cá em baixo. Uma vereda interminável. Ao longe via frontais de atletas e isso dava para adivinhar a escala. Interminável. A ser ultrapassado por atletas em catadupa, sem me conseguir mexer, com vertigens.

Por fim Ribeira Seca e os kms finais para Machico que fiz quase a correr, de tão impaciente que estava. Se a prova tivesse 170kms eu teria recuperado e feito uma classificação melhor. Lembrei-me da Ehunmilak, de como passei mal pelos 100km e aos 160 estava a voar. Acho que mais uma ou duas tentativas e afino um MIUT perfeito. Acreditei que fazia 23 horas e acabei com 26h e 42 minutos, classificação 382 em 787 atletas o que se insere na minha regra mental de ficar pelo menos a meio da classificação. O último fez 31h e 37 minutos. Mais de 200 desistiram.

Não sei se volto a repetir esta. Talvez pela Madeira, porque adoro a ilha e as paisagens e o MIUT pode ser um pretexto. Andei nos dias antes a carregar 50kg de equipamento fotográfico pelos trilhos e gostei. É uma coisa que me dá prazer, explorar. Sei que o trail running e as ultras me permitem fazer esse hike de forma mais eficiente e fácil por isso ambas as coisas estão ligadas. O ultra runner é um excelente caminhante e explorador. Já discuti isto com o amigo João que me diz o mesmo, que quando apenas andamos a pé pelo campo ou serra, sem a pressão de uma corrida ou de um treino, sentimos uma paz e liberdade, um relaxe, como se fosse muito fácil por comparação. Também sinto isso com a comida e a bebida. Nos dias seguintes a uma ultra, beber água fresca ou uma cerveja ou um sumo, uma boa refeição, sentado, confortável, parece que tem mais valor e uma intensidade maior.

Senti um enorme alívio. Este ano vou ter a Freita e o Mont Blanc. Para o ano estou a pensar na PT 281, Patagónia (ultra fjord) ou Monte Fuji ou Leadville 100… veremos o que vem aí 🙂

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Aqui a actividade no Strava: https://www.strava.com/activities/953833439

EDIT: obrigado sério, Primperan em vez de priberan

EDIT2: Esqueci-me de contar um episódio que me aconteceu e que o amigo João Miguel (que terminou pouco antes de mim) me relembrou no facebook. A certa altura num posto de abastecimento vejo uma mulher toda jeitosa com uma embalagem de fatias de presunto aberta. Não me fiz rogado, aproximei-me e fui para tirar o presunto e ela “ahh não é para si” e depois percebi que ela era acompanhante do marido ou namorado que estava sentado mesmo à frente e nao alguém da organização. Ele olhou para mim cheio de pena e lá me disse “vá, pode tirar, sirva-se”. E pronto, servi-me de uma fatiazinha e fui-me embora todo contente que a presunto dado não se olha o dente.

ouch

Tenho o pé direito em mau estado. Não me doía muito na prova excepto o tornozelo de entorse ligeiro em treinos, na segunda fico a gemer de dores ao mexer o dedo grande do pé e hoje estou bom para canadianas. Sesamoiditis, penso eu, mas o remédio é sempre o mesmo: descansar. Já tive esta sensação em semanas de muita intensidade, mas muito menos forte do que desta vez. Pode ser que passe depressa.

Abutres 2017 – relato

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Abutres, feitos. Tinha previsto entre 8 e 9 horas, fiz 8:32 tempo de chip.

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O dia amanheceu gelado em Miranda do Corvo. Fiquei no Hotel Parque Serra da Lousã (http://www.hotelparqueserradalousa.pt/alojamento-4-estrelas-no-interior-do-parque-biologico) que recomendo vivamente. O hotel é novo. Foram espectaculares ao deixarem os atletas hóspedes tomar banho no spa bem depois da hora do checkout e com um pequeno almoço fantástico às 6 am, incluindo bolachas e pacotes de coisas para levarmos para a prova. O hotel é bonito e parece-me um sítio a visitar com mais calma.

Choveu bastante dois dias anteriores mas durante toda a prova até pelo menos às 17h não choveu e até houve sol em vários momentos. Ao sairmos de Miranda começou a chover muito. Tendo em conta que a prova só acabava às 21h, os últimos atletas sofreram muito. Os Abutres (e o UTAX que é na mesma região) são famosos por doses maciças de lama. Esta também teve muita, mas nada de extraordinário comparado com edições passadas.

Pés com tape, o truque me livrou de bolhas até agora, depois da má experiência na UDP. A questão das bolhas torna-se crítica em pisos muito técnicos com pedras, especialmente descidas e com muita água e lama. Contudo o tempo esteve fresco e isso contribui para diminuir a probabilidade. Com tempo quente são bem mais prováveis. Estreia das Salomon Speed Cross 3 em corridas oficiais e foram a escolha certa. Vão fazer-me a primeira parte do MIUT. A sola é muito agressiva e ideal para fixar em paredes de barro liso e escorregadio. Também se livram da água depressa. Tive várias vezes o pé submerso em água e em lama até à canela.

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A serra da Lousã já conhecia do UTAX, embora noutros percursos. Achei o percurso dos Abutres mais interessante que o do UTAX. O do UTAX pareceu-me artificialmente inchado para fazer mais de 100km. Os Abutres tem tudo na medida certa, é um percurso que senti ser compacto.

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Estas florestas são muito húmidas, há riachos, cascatas, a terra é escura e lamacenta. É um tipo de paisagem pouco comum – digo eu – em Portugal. Os bosques lembram outras paragens mais a norte da europa. Recantos das florestas, os vales profundos, as aldeias, os rios e cascatas, a sensação de isolamento…

Aqui Gondramaz por onde passamos e abastecemos aos 39km.

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Caras conhecidas na partida, é uma prova que atrai os tops.

Fui sem bastões, conselhos do amigo Pedro Batista numa conversa de facebook que já fez isto duas vezes. E com toda a razão. Sou fã de bastões, mas nesta prova são uma má opção. É demasiado técnica. Em muitas situações os bastões são um obstáculo. Os trilhos são estreitos demais, há zonas técnicas em que precisamos das duas mãos, especialmente a descer. Foi a única prova até hoje que fiz em que posso dizer: bastões não.

O arranque deu-se, como é hábito, num ritmo absurdo. E o João deixamo-nos ficar para trás e a comentar um com outro a loucura dos entusiasmados. Impressionante como há atletas que aos 5km estão em grande esforço a trote em subidas quando ainda faltam 45km de prova e mais de 2500 metros de acumulado. É assim em todas as que vou, no MIUT fui eu que cometi esse erro e paguei com o meu DNF. Por vezes deixamo-nos levar e não queremos ficar na cauda da corrida. Mas aqui eu tinha medo de ter quebras enormes e por isso encarei a prova como um treino, indo ao meu ritmo, sem pressão de tempo. Aos 13km em Vila Nova estava na classificação 413 (em 600 atletas). Terminei em 303, apenas porque tive um ritmo estável durante toda a prova, não acelerei na segunda parte. Só não quebrei. Quase todos os atletas que passei tinham simplesmente quebrado e já não conseguiam correr bem em planou ou descidas normais. O segredo destas coisas é conseguirmos correr onde é para correr do princípio ao fim da prova num ritmo estável. Não é ganhar 2 minutos numa subida indo a trote em vez de andar nos primeiros 20km para depois fazer os últimos 20km passo de caracol  e a ver tudo escuro.

Não sou eu na foto, mas é só um exemplo do tipo de trilhos.

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Esta prova encaixou na perfeição no meu perfil, técnica nas duas descidas principais, com single tracks de sonho, alguns a obrigar a uma constante ginástica. Quem pensa que correr trail aqui é “correr” com as pernas… temos de usar os braços, passar debaixo de troncos, deslizar por pedras, saltar… Trilhos bem divertidos, parecia playstation. Tenho os ombros e os braços doridos.

Mas aqui talvez um dos pontos negativos esta prova: muita gente, especialmente quando se misturam os atletas dos 30km (dorsal verde) na parte final. Não sei como resolver isso, mas é chato não poder descer (ou subir) à vontade e ter sempre gente a atrapalhar o rimo por causa do medo. Sublinho medo. Numa prova normal o grupo estica e deixa de ser um problema, mas aqui com esta injecção de atletas dos 30km a meio da prova, vamos até ao fim a lidar com isso. O problema dos Abutres é que como é técnico, faz as pessoas bloquearem mentalmente com medo, e como os trilhos são mesmo muito estreitos, não é possível ultrapassar em grandes extensões a não ser com a cooperação do atleta ultrapassado e aqui  lidei com alguma falta de etiqueta de trail running, mais pronunciada nos atletas inexperientes. A maior parte não tinha problema em ceder a passagem mas houve excepções. Eu não sou forte nas subidas, pelo contrário, se não ganhar tempo a descer, torna-se complicado. Sou competitivo na minha escala. Corro contra mim. Não faço 500km num fim de semana e treino horas a fio para fazer hiking em família ou no convívio. Cedo passagem sempre por respeito aos objectivos e às provas dos outros. Por vezes atletas trocam de posição numa prova várias vezes e cooperam. Detesto sentir que estou a atrapalhar o ritmo de alguém, muito menos de um grupo de pessoas. Além disso gosto de ir depressa em descidas. Único ponto menos positivo, levou a situações de tensão em que me via forçado a travar e a pedir licença.

Gostei da organização da prova, extremamente bem sinalizada, tudo bem organizado, vê-se que é uma máquina bem rotinada. O percurso é inteligente e nunca chega a enjoar por ser repetitivo, embora aí entre na equação ter feito algumas provas de mais de 100km. Começamos a relativizar mentalmente e o que parece longo, vai tornando-se mais curto, o que parece difícil, torna-se simpático.

Não me aborreci em nenhum momento da prova, nunca tive a impaciência de “isto nunca mais acaba?” ou “nunca mais entro numa destas”.

Outro ponto, a qualidade dos abastecimentos é muito boa, assim como a prontidão dos voluntários. Recomendo sem reservas esta prova para qualquer pessoa que se queira estrear num trail mais longo e de qualidade. É superior a outros trails que fiz de distâncias parecidas ou menores. É um percurso inteligente e com sensibilidade e personalidade, com alma. A meta é gira, no pavilhão / mercado, cheio de gente.

Estou gordo para os padrões e senti mesmo esse peso, essa gordura, não ajuda nada… Mas fora isso, comi imenso e nunca tive uma quebra de energia grande. Fui constante e em paz. Hoje, dia seguinte, estou a 100% tirando uma dor no tornozelo direito de um entorse num treino a semana passada. Se a dor passar, a meio da semana já estou a treinar de novo.

O meu último km foi a 5:27/km em plano e contra vento, isto diz bem de como estava “bem”.

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Fazer um km a 5:27 depois de 8 horas e meia a mexer-me non-stop é fixe. Tudo porque vi uns tipos a correr lento e meti na cabeça que os passava e passei. O meu palpite é que numa prova de 100km ou mais teria feito uma boa classificação, no primeiro terço dos corredores. Não acabei na reserva. Acabei perto do meu amigo João, o que é raro há muito tempo, só uns 10 ou 15 minutos depois dele. Mas aí suspeito mais que ele esteve mais descontraído do que eu, que até comeu uma bifana e bebeu a mini no Posto de Vigia.

Senti-me muito feliz e emocional ao terminar, a prova é dura e exige uma concentração elevada o tempo todo, é raro dar para desfocar e viajar. Também tinha saudades da minha filha, precisava de tomar banho, meter-me no carro, voltar, ir ter com ela. Volta e meia pensava nela e acelerava. Foi um bom treino para o MIUT e tenho muita margem para melhorar, a começar pelo peso. Também foi o regresso ao trail desde a Ehunmilak. Não sei se volto a correr estrada, só se o trail me fizer ser maratonista sub 3h naturalmente, porque isto é bem melhor. Gosto cada vez mais de Portugal e dos nossos sítios.

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Ano 2017 – objectivos MIUT e UTMB

Pois é, bati no fundo, mas fui salvo por um pequeno milagre que foi ter sido sorteado para o UTMB, com o meu amigo João (inscrevemo-nos em conjunto). Não o esperava, era a nossa primeira tentativa. Hesitei antes de me inscrever porque sentia que 2017 não ia ser um ano em que eu estaria no topo da forma e o UMTB é para mim uma prova que se resume a competir. Naquela zona há provas bem mais “sossegadas” e que permitem absorver a natureza e as vistas com outra tranquilidade que não a de milhares de corredores do mundo inteiro. Sempre me vi como explorador de provas mais exóticas e interessantes. O UTMB era uma que queria fazer quando estivesse no topo da forma, à custa de correr provas um pouco por todo o mundo. Contudo, apareceu já, por isso em Setembro quero ser o melhor corredor que alguma vez fui.

Estou assim inscrito nos Abutres (dia 28 de Janeiro), no MIUT (22 de Abril) e no UTMB (1 de Setembro).

O ponto de partida é duro. Meses sem correr muito, apenas um ou outro treino, Estou com 5 quilos a mais face ao meu racing weight. Massa gorda nos 15.5%-16% quando já esteve nos 12%. Sinto-me dolorosamente pesado, cheio de banha na barriga, algo que sinto mexer quando corro ou pedalo. Não foi só não correr. No treino de estrada para a maratona o foco foi sobretudo em velocidade. Deixei pois de fazer treinos gigantes de 4 horas em ritmo baixo que ajudam a torrar calorias. Ainda hoje de manhã com este frio e vento fui treinar e foi um pouco triste ver um pace de 5:45 com o coração a 160bpm, ou seja, muito lento. Um pouco cansado porque mesmo assim fiz 28km com 1700m de desnível em Sintra no domingo e porque andei com a minha filha de bicicleta para a escola dois dias consecutivos, o que significa 8kms de cada vez a puxar um peso considerável no reboque cougar chariot, apanhando umas subidas interessantes na belavista. Mas tudo isso foi graças ao UTMB, à pressão.

Com os Abutres já aí à porta, vou sofrer bastante, mas vou encarar como um treino longo. Mesmo no treino deste domingo não acabei “bem”. As pernas já recuperaram a resistência ao desnível mas com mais quilos em cima e muito em baixo de forma, não dá para em pouco tempo inverter isto. Uma coisa importante que percebi – já vou tendo alguma experiência e registo de dados – é que o meu declínio aconteceu em duas coisas específicas. A primeira foi o ganho de peso e perda de alguma massa muscular, o que tem um impacto tremendo. Outra foi a desregulação metabólica. O meu corpo perdeu a capacidade que tinha de metabolizar gordura rapidamente quer devido à ausência de treinos muito longos e lentos – algo próprio das ultras e que não treino desde a Ehunmilak, quer pelo sedentarismo e maus hábitos da pausa após a maratona do Porto. Assim, tenho quebras de energia constantes e fome durante um treino. Já estou a recuperar, ontem quase não jantei e hoje em jejum fiz 8km clássicos sem sentir uma quebra. Tenho de ver coisas positivas nesta pausa, o meu corpo por outro lado recuperou. Já não tenho dores no entorse que tinha há um ano no pé esquerdo por exemplo.

O ajuste de contas com o MIUT devia ter bastado para me motivar, mas não chegou. Faltava um sinal divino e o sorteio do UTMB foi esse sinal. Em poucos dias fiz mais transformações que em muito tempo antes. Cortei com álcool e bebidas açucaradas já faz quase 3 dias e planeio consumir apenas em ocasiões especiais (jogos do Benfica) e sociais . Treino algo todos os dias: corrida, bicicleta ou ioga / exercícios de core. Voltei a fazer o meu próprio pão enriquecido – hoje foi farinha integral com muesli de avelãs, passas e manteiga de amendoim. Só janto proteína e vegetais. Introduzi bloqueadores de acesso a websites e à internet com uma aplicação chamada SelfControl para me fazer aproveitar mais o tempo em que estou sentado numa secretária para trabalhar e reduzir ao mínimo as distrações e ter mais tempo físico (de 1h em 1h levanto-me e faço algo físico). Criei um calendário numa aplicação chamada Asana onde misturo a vida profissional com a pessoal e os treinos, pois a logística de pai separado obriga a muito improviso misturado com planeamento. Estou a reduzir cafeína em força (estava nos 4 cafés por dia) para dormir o melhor possível. Zero sal. Estou a ler o Correr ou Morrer do Kilian Jornet. Tenho o objetivo, não sei como, de consistentemente fazer perto de 100km por semana quando chegar a Março. Penso meter-me no yoga. Reduzi ao mínimo a vida social desencaminhadora. Meti de lado passatempos como a fotografia. Até setembro vou viver o tempo livre como um atleta porque me calhou o UTMB e não quero apenas acabar, quero fazer uma prova boa e orgulhar-me dela. Quero também terminar o MIUT e fazer uma boa prova.

Vou procurar voltar a escrever aqui. Aliás, ter escrito isto depois da paragem já é um sinal da minha motivação. Vamos a isto, descobrir o corredor que há em mim, o melhor corredor que há em mim. Posso matar-me com maus hábitos depois, celebrar, afundar-me. Mas se tive a sorte do sorteio tenho de a honrar e agradecer com humildade. UTMB aqui vou eu.

 

 

crónica de uma morte anunciada (Maratona do Porto 2016)

Desisti pouco antes do km 30.

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Aquilo de que os kamikazes são feitos. A minha desistência começou há 4 meses quando achei plausível fazer sub 3h. Essa impressão, talvez fruto da euforia de ter feito a minha primeira de 100 milhas ou ter feito duas maratonas de estrada em 4h e 3h30 levou-me a inscrever-me na maratona do Porto de 2016, pensando que poderia fazer sub 3h.

Eu conto fazer talvez mais 3 maratonas de estrada até ao fim da minha vida. São muito duras e não me dão prazer especial, embora sejam marcantes (já lá vou) a nível de evolução. Depressa percebi que não faria sub 3h, e pensei em sub 3h15, embora algo contrariado. Não me teria inscrito sabendo-me tanto no limite de conseguir tirar “apenas” quinze minutos. Treinei 4 meses fazendo o plano de maratona nível 3 (avançado) da garmin, envolvendo treinos bi-diários e muita insistência em velocidade e lactate treshold, na capacidade do corpo ter endurance para aguentar regimes fortes.

A verdade é que todos os testes que fiz me disseram que não conseguia fazer sub 3h15. E até no dia da maratona, naquela manhã fria, linda e solarenga no Porto, ponderei, discuti comigo mesmo e com o amigo Pedro Paulino que também foi, se devia ir para algo como 3h20.

Nota: para fazer uma maratona sub 3h15 o pace por km é 4:35. Para fazer próximo de 3h20 o pace é uns muitos mais lentos 4:45… uns míseros 10 segundos por km.

O meu raciocínio construiu-se em:

  1. eu não me teria inscrito se me tivessem dito que ia fazer 3h20.
  2. eu eventualmente vou fazer uma maratona abaixo de 3h num ponto qualquer da minha vida
  3. eu não vou aprender nada de novo se correr dentro dos meus limites
  4. Acredito em milagres, sou uma pessoa espiritual.

Estas  4 premissas fizeram-me decidir por tentar 4:35/km. Sub 3h15. Parti do portão A, reservado ao pessoal mais sério que faz menos de 3h15 e as boas notícias é que nem uma vez me senti atrapalhado (numa maratona com 5000 participantes é uma boa notícia). As más notícias é que durante todo o tempo em que corri não ultrapassei quase ninguém, pelo contrário.

Fui com o monitor cardíaco. Penso que 588 é o meu suffer score mais alto de sempre. Estive 30 minutos no total em anaeróbico, com a frequência acima de 173, a fronteira objectivamente medida nos testes de lactato que fiz antes da ehunmilak.

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Não sou propriamente inexperiente nas maratonas e na corrida de estrada. As sensações que tinha no corpo e o relógio diziam-me claramente que era um ritmo insustentável. Mas consegui apanhar o pacer das 4:35. Os kms 2,3 e 4 fiz a 4:29, 4:20 e 4:15 para o apanhar. O meu coração já ia disparado. Era absurdo para mim. A minha maratona anterior tinha sido feita a 5:00/km. Estava com a sensação de ir a sprintar. O meu coração a 175bpm quando para ser realista acabar a prova não devia ir a mais de 165 nesta fase da prova, idealmente nos 150s…

Então por que razão não abrandei logo? Se calhar porque mesmo assim continuei a acreditar num milagre e estava a gostar de ir naquele pelotão das sub 3h15. Acabando em menos de 3h15 fica-se nos primeiros 500 corredores de uma maratona de 5 mil corredores. Estava a tentar distrair-me do sofrimento vendo o magnífico Douro, as pessoas a aplaudir, o céu azul, Porto, Gaia, detalhes pequenos…  E acreditei até ao km 16. Altura em que me comecei a afastar-me do pelotão e a ficar exposto ao vento contra. Aí tomei a decisão de esquecer as sub 3h15 ou nem acabava, mas foi tarde demais.

O choque psicológico de ver o grupo a afastar-se, e isto quando só reduzi 10 segundos por km, foi duro.

Depois veio a parte mais dura do percurso, o cais de Gaia. Um empedrado muito grosseiro e anguloso, pedras enormes sobressaídas, um piso completamente assassino para as minhas new balance minimais, mas que teria sido assassino com qualquer calçado de estrada. Grande parte dos corredores seguia pelos passeios no meio das pessoas quando se podia. Empedrado normal já custa bastante, mas quando as pedras estão todas desconjuntadas é tortura. Comecei a sentir bolhas nos dois pés. Por fim quando saí do empedrado tinha feito os últimos 2km a cima dos 5:00 e estava cheio de dores. A faltar 12km ainda, com dificuldades já para me manter nos 5:00/km, adivinhei um calvário brutal para fazer 3h25 na melhor das hipóteses.

Reflecti pouco tempo, não foi preciso pensar muito e encostei à box. Não teve qualquer efeito psicológico danoso.  Estou de facto mais rápido e não tive uma desilusão porque não tive propriamente uma ilusão antes.

De caminho tirei seis minutos à minha anterior meia maratona e mais uns quantos recordes.

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Dei tudo o que tinha até bater num muro e isso também foi importante. Ao contrário da minha desistência no MIUT, aqui não houve factores como enjoos e afins. Só esteve em jogo uma variável: o ritmo imprimido por mim. Confirmei certos limites e isto serve de referência. O shutdown nesta prova deu-se ao nível das pernas, ficaram cansadas e rígidas, sem força.

Só me volto a inscrever numa maratona quando tiver mais a certeza do tempo que posso fazer. O ideal é fazer mesmo uns testes, ver o que acontece, e se achar relevante inscrever-me, inscrevo-me. Isso não vai acontecer até eu pulverizar 3h15. Pode ser daqui a 2 anos, 3, 4… não sei.

Não me arrependo de me ter inscrito. A estrada permite uma evolução muito forte. Aprendi algo importante que esteve também na base da minha menor evolução em estrada de 2014 para 2016. Corri estrada sempre a pensar em ultras e trail. Não treinei velocidade nos pontos críticos que o plano de maratona de nível 3 trabalha e quero ver se mudo isso. O

Mas até Abril já tenho dois objectivos bem mais divertidos. E o meu plano para eles, inventado por  mim, terá por base 2 treinos semanais chave, o longão do costume com muitas horas e muito desnível em sintra baseado em variações do STE (25-30km com 1500m de desnível) e, novidade, um de séries / velocidade / rampas. Os outros treinos da semana havendo tempo serão só para meter kms em muito baixa intensidade. Mas mesmo muito baixa, para permitir a recuperação e regeneração destes 2 treinos chave.

Venha 2017!

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