size matters?

ultra

Todo o ultrarunner ouve assobios de admiração e confronta-se com olhares perplexos como se fosse um super herói por, simplesmente, ter feito uma prova de [inserir mais de 50 km aqui]. Nem mesmo facto de terem sido em montanha, na selva, em altitude, num deserto ou à beira rio parece ser relevante e o desnível da mesma também não. Fizeste 70? 80km? Mais de 100km? Confesso que é um prazer ambíguo. Sabe bem receber elogios. Até porque me exponho bastante nos meus objectivos para me encurralar e motivar a atingi-los e penso nos amigos e família que estão a dormir sossegados e a fazer as suas merdas até irem ver um status no facebook. Mas às vezes sinto que parte está desajustada focando-se nos tais kms, desvalorizando, implicitamente, coisas que tornam uma prova mais ou menos difícil (desnível, técnico, temperatura, se choveu ou não, classificação obtida, tempos de cut off, autosuficiência, etapas, etc.), já para não falar na classificação e se o field era competitivo. E nesta forma de ver as coisas, coisas como fazer um bom tempo numa maratona de estrada parecem minguar de importância.

Laird Hamilton, em tempos o maior big wave rider do mundo, criticou a fama da onda da Nazaré por ser só “tamanho” e os media viverem obcecados pelos metros da onda e nem distinguirem se um surfista é puxado por jet ski ou se rema ele próprio, se a onda é técnica ou não, pesada e perigosa ou perfeita e leve. A Nazaré naquelas condições é perigosíssima e o Laird Hamilton tinha apenas inveja por Nazaré ter destronado a sua Jaws ou Teahupoo nos media. Mas isto é beside the point. O point é que no big wave riding, o público entende quantidade de metros verticais e no ultra running público em geral só percebe km’s de comprimento.

E se exceptuarmos casos como Kelly Slater a verdade é que um surfista que bata o recorde de maior onda – algo que tem muito de procura, de sorte, de estar naquele sítio aquela hora e claro, de tomates – tem muito mais projecção mediática  no mainstream do que um que ande pelo top 10 do ranking profissional de surf e seja um super atleta de topo, o melhor entre milhares.

Um exemplo de hype nas ultras é o Dean Karnazes, um bom atleta e boa pessoa, mas perfeitamente mediano no grande esquema das coisas e  uma construção de narrativa de marketing com recordes do tipo guiness: 50 maratonas em 50 dias, ou correr 560km sem dormir em 80 horas e que aparece nos David Lettermans da vida a promover livros em que simboliza o average joe que está quase a trair a esposa no hotel numa viagem de negócios e desata a correr. Nada como a bela redenção moral para dar um toque especial a uma historia americana.

Basta mencionar que Yannis Kouros correu 473km em 48 horas pelo que acho que faria 560km em pouco mais de metade do tempo do Karnazes. Fez mais de 1000km em 6 dias e o seu recorde das 24h está acima dos 300km (imbatível há décadas)… mas quem conhece o grego? Até Scott Jurek, vencedor 3 anos consecutivos da Spartathlon, da Hardrock, da Badwater e seis vitórias consecutivas na Western States e que só se tornou famoso por causa do best seller de Christopher McDougal  – Born to Run –  se insurgiu num ano em que atribuíram a Dean mais uma distinção de atleta xpto quando não tinha ganho puto:

This is a prime example of how a lot of media is working in this country these days, grabbing onto somebody who has a great publicity machine, great sponsors and media outlets. I would rather earn my titles and the recognition I deserve out on the race course. If you look at other sports, the guys that are finishing mid-pack on the PGA Tour or batting .500, they aren’t getting any publicity. Maybe once in a while they get a shot here and there. Generally, it’s the winners that are getting the attention. It’s just kind of odd that that’s happening in our sport often nowadays, where we’re just seeing one person stealing the show and winning awards. In other sports, that wouldn’t happen.

Gosto muito de correr a maratona de estrada e gosto de variar períodos de treino de trail e estrada. Tenho um enorme respeito pela disciplina e força mental necessária para treinar estrada e pela universalidade e democracia dos seus padrões, até porque é bem mais barata e menos elitista que as ultras de trail a nível de equipamento e viagens. O certo é que ninguém dá os parabéns por acabar a 2ª ou 3ª maratona só por si, especialmente depois de fazermos ultras. Um dia faço a experiência e digo que corri a maratona em 2h27′, o tempo da Sara Moreira em Nova Iorque, e vejo se alguém também me dá aquele olhar de “eish, ganda maluco” ou se também me fala no cunhado que também deu em corredor e ainda no fim de semana passado fez 10km de seguida.

Tenho até a utopia de que talvez seja possível pelo atletismo e trail trabalhar com jovens desfavorecidos. Não sei se não penso num projecto qualquer maluco do estilo criar uma equipa de trail runners da Belavista, Damaia ou Buraca, recrutando runners em bairros sociais e fazendo deles máquinas destruidoras de trilhos. Se temos os Esquilos de Monsanto, porque não criar os Morcegos do Inferno ou os Ratos do Apocalipse? Aposto que a Monster ou a Securitas nos patrocinava e o resto do equipamento eles roubavam facilmente na sportzone e decathlon ou em emboscadas a runners em Sintra. Mas isso são outros 500. Quando digo que é possível acabar uma maratona de 160km a treinar 80km por semana ou menos em treinos divertidos por serras e que para fazer tempos com os da Sara Moreira pode ser preciso treinar 160km ou mais por semana (não sei quanto, mas será muito), as pessoas ficam surpreendidas. Sinto-me bem por completar ultras num tempo pelo menos acima da média para já, mas não quero também ser didático qb e não deixar que a febre das ultramaratonas de trail remeta para um 2º plano de proeza atlética o conseguir bater um determinado tempo exigente numa maratona, na meia ou nos 10 mil metros, como que desvalorizando as incríveis proezas que aqui residem.

Espero que o ultra running não relativize os feitos do atletismo de estrada, como se fosse uma divisão maior e sirva para nos educar a todos a valorizar ainda mais todas as modalidades de endurance, das quais as ultras são apenas uma.

7 thoughts on “size matters?

  1. Na minha modesta opinião, velocidade é muito pior do que distância. Fascinam-me as pessoas que correm treinos fáceis a 4′ ou até 4’30. Por isso compreendo perfeitamente o que estás a dizer.

  2. Como tudo aquilo que se democratiza, a corrida leva agora com a visão desfocada dos media generalistas e do povo inguenorante. A esperança é que, com o tempo, comecem a perceber que o tamanho que importa não é só o da distância, mas o da intensidade, altimetria, e da acumulação de variáveis que dificultam o passeio como a temperatura e o tipo de solo, etc. A mim, por exemplo, interessa-me mais a distância que me separa de outras galáxias, durante um treino. Ou, por outro lado, como há milhões de células microscópias amorosas, a colaborar para que eu consiga continuar a pôr uma perna atrás da outra.

  3. Acho que entre ‘leigos’ e corredores (mesmo que amadores e reis das meias disto e daquilo) o factor distância é logo o comparativo de enormidade e espanto. Dizes que correste uma maratona, já te olham de lado, ‘granda maluco’ como dizes, falas de ultras e desnível já te colocam no grau de loucura (‘olha, mais um apanhado nisso do running’), nem que seja pelo comparativo mediático que é agora o Carlos Sá.

    As pessoas falam sem noção exacta só do que ouvem por alto, das coisas mais deprimentes que já vi (não por parte do Carlos, obviamente), foi a participação do Carlos Sá no programa da Júlia Pinheiro, creio que depois de ter vencido Badwater. As perguntas eram todas as que não interessavam e o retrato era do ‘maluco’ que até era gordo e fumava e agora vai correr para o meio do deserto. Mais do que a corrida em si, o fenómeno estranho / a curiosidade é o que interessa.

    A cena é que a corrida é agora um meio muito transversal em que convive a malta do footing no paredão, o entusiasta do ginásio, o artista dos 10k e malta que faz longas distâncias, ultras, trails, etc. É como o universo dos foodies, em que o tipo que vai às tascas, a senhora dos bolos estilizados e os masterchefianos concorrem pela atenção mediática à volta de comida. Vai haver sempre quem receba o destaque (in)devido e quem fique de fora da atenção devida.

    Quando a coisa é entre corredores um pouco mais dedicados, a distinção pode ser mais entre o drive / competitividade que os movem. Mas isso depende das pessoas obviamente e é outro assunto diferente…

    1. Sérgio, apanhaste perfeitamente a impressão que tive ao ver a grande Carla André entrevistada num programa da manhã. Ela que faz aquela ultramaratona des sables e eles a fazerem perguntas completamente imbecis. Olha, deste-me uma possível ideia, vou fazer eu entrevistas a corredores famosos por e-mail, se eles quisrem…

  4. Para quem não está dentro deste mundo, é mais fácil perceber apenas a distância do que outras coisas como as que falaste.

    E mesmo a distância às vezes é difícil de perceber. Tinha um colega para quem tudo era uma Maratona, e que por mais que explicasse que Maratona são 42195 metros para ele uma corrida de 10 Km era uma Maratona mais pequena.

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